Vi e ouvi Amália pela primeira vez ao vivo em 1946 pela mão da minha avó, quando me levou ao velho Teatro Apolo, na Rua da Palma, para assistir à opereta “A Mouraria”.
Era miúdo, tinha acabado de entrar para a escola, e só me lembro de uma senhora a cantar com um espampanante vestido preto rodado. No ano seguinte vi-a outra vez, agora numa revista do Parque Mayer, “Se Aquilo Que a Gente Sente”. O título era o verso inicial de uma quadra popular de Augusto Gil que eu sabia de cor: “Se aquilo que a gente sente/ cá dentro, tivesse voz,/ muita gente, toda a gente/ teria pena de nós.” Amália Rodrigues ainda não era AMÁLIA, mas já dava voz àquilo que Portugal sentia mas não era capaz de exprimir.
Amália emergiu num tempo em que havia música e animação pelas ruas de Lisboa. Vai não vai, apareciam miúdas e graúdas a cantarolar os fados e canções da moda, acompanhadas por músicos ambulantes tocando concertina, guitarra ou até violino.
Era uma forma de vida honesta, como qualquer outra.
(Ocasionalmente ainda encontro vestígios dessa vivência caritativa no subway nova-iorquino.) Ajudava à comiseração os músicos serem frequentemente ceguinhos; quanto a elas, empunhavam as letras impressas das canções que cantavam e distribuíam- nas a troco de uma gratificação.
Para aumentar o rendimento tocavam às campainhas das portas — havia sempre gente em casa — na esperança de angariar novos clientes, em geral as sopeiras (o nome popularucho das empregadas domésticas). A expansão da rádio nos anos 1940 alimentou e alimentou-se desta tradição, tal como o nacional-cançonetismo seria um produto da televisão, inaugurada em Portugal em 1957. O fado al fresco era complementado com o das ‘casas típicas’, regulamentado pela profissionalização à Estado Novo.
O Governo odiava as conotações vadias e libertárias da canção popular, mas aproveitava as benesses de um turismo incipiente.
O fado juntava-se aos campinos da lezíria e à Nazaré como os chamarizes de Portugal.
Em 1938, Monsanto recebera o Galo de Prata como a ‘Aldeia mais portuguesa de Portugal’. Cresci a ouvir Amália na rádio e no teatro. O seu estilo e personalidade faziam a síntese impossível entre o realismo castiço de Hermínia Silva e o perfil senhoril de Maria Teresa de Noronha. Ao contrário das outras fadistas e cantadeiras — como então lhes chamávamos e o cinema “Fado, História d’Uma Cantadeira” (1947), de Perdigão Queiroga —, Amália foi-se apurando e evoluindo, ajudada por uma inteligência intuitiva, não muito diferente da de outra contemporânea, Maria Callas (1923-1977).
Em ambas, a voz torturada vinha das entranhas, mesmo quando se projetava, densa mas acutilante, na estratosfera canora. A propósito: no filme de Queiroga que a confirmou, Amália contracenava com o galã Virgílio Teixeira, que nessa época vivia em quarto alugado em frente à casa onde nasci e cresci, na Rua de Artilharia 1.
De manhã chegava à janela e via-o a pentear-se, a pôr a gravata ou a decorar papéis de guião na mão. Mais tarde, Teixeira participaria em vários filmes de Holly wood protagonizados por atores do calibre de Richard Burton ou Yul Brynner. Encontros de um grau diferente tive-os na Fotografia Brasil, na Rua da Escola Politécnica, a São Mamede, que frequentávamos para as fotografias de família e onde eu ia, a partir dos meus 10 anos, para as fotos tipo passe destinadas às cadernetas dos professores do liceu.
O artista era o renomado (Joaquim) Silva Nogueira, o ‘fotógrafo dos atores’, que ao longo de mais de uma década, nos anos 1940 e 50, retratou sistematicamente Amália. O estúdio, aparatoso, estava repleto de fotografias de gente do teatro, entre as quais recordo uma enorme foto de Amália, com olhar baixo, mãos na cintura e cabelo desalinhado.
(Havia também uma caricatura de Silva Nogueira, talvez do risco de Stuart Carvalhais, mostrando o fotógrafo com a mão no fio do obturador, prestes a fotografar Salazar; era dele o retrato do ditador que nos vigiava do alto da parede das salas de aulas de todas as escolas do país.)
Atenção: por perto ficava a Praça do Brasil, que dera o nome ao estúdio fotográfico e que em 1948 retomou o seu nome original (século XVIII) de Largo do Rato quando foi batizada a Avenida do Brasil, a Alvalade. Só esse conjunto de fotos de Amália por Silva Nogueira dava uma exposição — e deu, em 1999 (o ano da morte da ‘Rainha do Fado’), no Museu Nacional do Teatro.
AS VOZES DO SÉCULO XX
Se é verdade que comecei por achar o fado harmonicamente pobre, a minha admiração por Amália nunca cessou de crescer. Aliás, dizia-se que o que ela cantava não era fado…
Com coração independente, violava as regras todas e seguia em frente.
Quanto mais cantava, mais melhorava e inovava.
Foi assim que me agarrou — eu que aos 8 anos já era um melómano da ópera. À distância, compreendo o seu génio.
Amália percebeu, como ninguém antes dela, que a música dá a volta às palavras, pode até contradizê-las e transformá-las em emoção pura.
O canto é mais verdadeiro do que a fala. Não era preciso saber português para entender o que cantava; bastava ouvi-la. A mágoa do fado rima com lágrima, o título de um dos seus álbuns de despedida.
Amália ampliava as vogais, arrastava as consoantes, esticava a linha vocal sem a partir, antes percorrendo todas as notas intermédias num alucinante legato cromático que nos deixava estupefactos e em transe, como ela.
Moldava as palavras a seu jeito, como um escultor espreme e torneia o barro, até encontrar o som adequado. Não admira que os poetas a compreendessem como ninguém, de José Régio e Pedro Homem de Mello a David Mourão-Ferreira e Vinicius de Moraes. Lembro- -me da celeuma que se gerou quando Amália se atreveu a cantar Camões, em 1965. A sua vida era uma rua secreta onde à noite, de repente, se sentia abraçada pela sombra do poeta (como assevera em ‘Nome de Rua’, com poema de Mourão-Ferreira).
Aliás, ela própria versejou com letras simples mas eficazes alguns dos seus fados.
O seu último álbum de temas novos, “Lágrima” (1983), já referido, teria letras suas. Ao ouvi-la, os sons transformam-se em imagens tão fortes como o esgar de “O Grito” (1893), de Edvard Munch, e os fados aparentam óperas para uma voz só, capaz de dobrar uma orquestra inteira. Como ela canta em ‘Grito’, com letra sua, “do silêncio faço um grito!” Mas Amália também foi capaz de dar rosto à simplicidade tocante do ‘Vou Dar de Beber à Dor’, de Alberto Janes, sobre as mudanças da Casa da Mariquinhas, e de implicar a brejeirice do ‘Cochicho’ (da menina). Admirável ainda o seu tratamento de canções folclóricas, como ‘Ó Ai Ó Linda’, cantada do fundo da garganta como se fora uma grinalda de malmequeres (em vez do raminho de salsa da letra). Outras cantoras da mesma geração — Edith Piaf (1915-1963), por exemplo — agarravam- se a palavras que diziam tudo, mesmo significando nada, como aconteceu com rien no ‘Non, je ne regrette rien’ (1960), de Charles Dumont e Michel Vaucaire.
O instrumento vocal de Piaf era, porém, muito mais limitado. Amália habita o panteão das maiores vozes do século XX. À naturalidade de Ella Fitzgerald (1917-1996), a ‘First Lady of Song’ ou ‘Primeira Dama da Canção’, para quem cantar era uma forma de respiração, até no improvisado scatting, corresponde a autenticidade de Amália, com raízes no fundo da alma. Genuinamente alfacinha mas de origem beirã — o Fundão das cerejas —, Amália era latina dos quatro costados, com laivos de fatalismo mediterrânico na mente e na voz.
(A parisiense Piaf tinha sangue italiano por via materna; herdara da mãe, Annetta Giovanna, o segundo nome que nunca usou.) Amália abordou todos os géneros de música, exceto a ópera, mas sempre a considerei uma irmã da Callas, na voz extensa e emotiva e na determinação em vencer. Três anos as separavam. Ambas triunfaram cedo: Callas cantou a “Tosca” em Atenas aos 19 anos; Amália começou a cantar profissionalmente no Retiro da Severa com a mesma idade e aos 23 anos fazia a sua estreia internacional em Madrid. Cantar era viver e sofrer (para triunfar). Ouça-se, por exemplo, o que Amália faz com a palavra ‘loucas’, do ‘Barco Negro’ (em que virou do avesso a ‘Mãe Preta’ de Maria da Conceição), e a seguir compare-se com o ‘Amami, Alfredo’ da Callas, em “La traviata”. Com vozes instantaneamente identificáveis, ambas conseguiram criar imagens muito próprias, certeiras, elegantes e autênticas. À carreira meteórica da Callas — estrelato internacional nos anos 1950 e ocaso vocal em meados dos anos 1960 — contrapôs Amália uma atividade que ultrapassou as cinco décadas. As duas não souberam ser felizes, mas no momento mais difícil da sua vida, em 1984 — em Nova Iorque, com problemas de saúde e tentações suicidas —, Amália pôde encontrar alento e recuperar o gosto pela vida extasiando-se perante as movimentações coreográficas de Fred Astaire. Num espaço de poucos dias devorou com os olhos todas as cassetes de filmes de Astaire, com ou sem Ginger Rogers, que conseguiu encontrar.
Callas morreu sozinha em 1977.
PRETO COMO O LUTO
Se “O Luto Vai Bem com Electra” (1931), como proclama a peça de Eugene O’Neill, o preto das viúvas da Nazaré casava bem com o fado e com Amália. Como ela explicou, xaile preto pede vestido preto e, além de tornar a silhueta mais elegante, “o preto está sempre certo, ninguém diz que é feio”.
Os únicos adornos possíveis eram uma flor cara no decote, uma ou outra joia, talvez uns brincos pingentes, mais uns lábios sublinhados a batom como um ramalhete rubro de papoulas (à Cesário Verde).
O penteado, esse, foi evoluindo, passando por um corte à garçonne até à cabeleira desfraldada. Curiosamente, na fase terminal da carreira, já sexagenária assumida, Amália deixou aclarar o cabelo, que tomou tons acobreados; ao mesmo tempo experimentou vestidos azuis e aventurou-se pelas restantes cores do arco-íris, da rosa à laranja. Sempre foi uma mulher fotogénica e inteligentemente bela. Não tinha rivais e sabia o que valia.
Herói e ícone na terra que a viu nascer, era a única estrela internacional e global portuguesa.
Houvera o almirante Gago Coutinho — que em 1922, com Sacadura Cabral, fizera a primeira travessia aérea do Atlântico Sul no “Lusitânia” —, saudado com admiração pelo povo, até morrer em 1959, aos 90 anos; em 1966, Eusébio da Silva Ferreira (1942-2014) tornar- se-ia uma estrela planetária ao ganhar a Bota de Ouro no Campeonato do Mundo de Futebol em Inglaterra (nove golos marcados) e de caminho obtendo para Portugal um honroso 3º lugar.
Neste mesmo ano chegava eu a Oxford para me doutorar em Química.
Na bagagem, constavam apenas dois objetos para me recordar a pátria: um desenho de Alfama pelo japonês Hirosuke Watanuki e o álbum de Amália conhecido pelo nome de “Busto”, lançado em 1962, o primeiro fruto da sua colaboração ímpar com o compositor Alain Oulman.
O nome vinha da estatueta que ilustrava a capa: o busto da diva, esculpido por Joaquim Valente e fotografado por Nuno Calvet. Porquê este álbum? Por tudo e mais alguma coisa, principalmente pelo ‘Abandono’, cuja letra, de David Mourão-Ferreira, aprendi logo de cor: “Por teu livre pensamento/ Foram-te longe encerrar/ Tão longe, que o meu lamento/ Não te consegue alcançar.” Onde era o ‘longe’? Em
Peniche ou no Tarrafal… Começara a Guerra Colonial, mas a Censura não reparou. Quem fotografou Amália, sempre bela a preto e branco, para vários LP foi Augusto Cabrita, o célebre diretor de fotografia do filme “Belarmino” (1964), de Fernando Lopes. Conhecemo-nos em Bruxelas, em 1991, nos tempos da Europália Portugal ’91, e foi logo o princípio de uma bela amizade, selada com a oferta do retrato de Amália que fez a capa do álbum “Vou Dar de Beber à Dor” (1969). (A propósito: Cabrita fora dos primeiros a fotografar as atrocidades da guerra em Angola; nove dessas fotografias foram publicadas em “Angola, Os Dias do Desespero”, de Horácio Caio, dado a lume em 1961.)
Amália foi fotografada por muitos, incluindo estrangeiros sonantes como Henri Cartier-Bresson e Irving Penn. Aqui dou conta de Jean Manzon (1915- 1990), que se radicou no Brasil após a ocupação de França pelos nazis em 1940. Com o seu trabalho para as revistas “O Cruzeiro” e “Manchete”, reinventou o fotojornalismo brasileiro; como cineasta, ganhou o Leão de Ouro no Festival de Veneza de 1972 com o documentário “A Amazónia”.
Nos anos 1940 fotografou Amália a cantar nos bairros históricos de Lisboa — um conjunto de imagens que adquiri este ano para a coleção de fotografia que estou a formar para o Museu do Neo-Realismo, em Vila Franca de Xira.
Na década seguinte foi a vez de o inglês Thurston Hopkins (1913- 2014) vir a Lisboa com um jornalista de ascendência sueca para uma fotorreportagem sobre Amália para o “Picture Post”. Ouviram-na cantar e nada ficou como dantes. Seguiram-na por todo o lado, pelas ruas e vielas, pelos cafés e casas típicas de fado, até na intimidade da sua casa; a beber um copo, a ensaiar com os guitarristas, a ser abordada por admiradores na rua, a brincar e a conversar com a irmã Celeste, etc. Hopkins, um dos mais notáveis fotógrafos da época gloriosa do fotojornalismo inglês, dir-me-ia que a partir de certa altura Amália e o sueco desapareceram durante vários dias; estava convencido de que tiveram um caso. A ele restaram-lhe os ciúmes…
AMÁLIA NA ÓPERA
Corria o ano de 1974, o primeiro em que me encarregara de escrever os textos, reunir a iconografia, organizar a cronologia e compilar as biogra fias para todos os programas de sala da temporada do Teatro Nacional de São Carlos, então dirigido por João de Freitas Branco. Ao todo, nove óperas e oito concertos. O highlight da temporada seria a nova produção de “La traviata”, de Giuseppe Verdi, com Joan Sutherland (‘La Stupenda’) e Alfredo Kraus, capaz de rivalizar com as lendárias representações da ópera com Maria Callas e o tenor espanhol, 16 anos antes. Lembro-me como se fosse hoje. Sentado no camarote do diretor, assisti à matinée de domingo, 21 de abril. Com o maestro Richard Bonynge, marido da Sutherland, prestes a iniciar o prelúdio, abre-se a porta do camarote para dar entrada a uma senhora. Espanto quase geral, pois nem Freitas Branco nem a mulher esperavam mais convidados. Ninguém a reconheceu, à exceção do meu amigo australiano, Peter Conrad, tutor oxoniano e colaborador dos textos do programa: era Amália Rodrigues! No auge da fama, Amália tinha entrada livre em qualquer sala ou repartição. Ninguém lhe recusava um jeitinho… Já no filme de Henri Verneuil “Os Amantes do Tejo” (1954) — onde participara como Amália, ela própria — aparecera na Polícia a interceder pelo seu amigo Pierre (Daniel Gélin), chofer de táxi em Lisboa, para lhe estenderem a licença por mais umas semanas. Amália podia não saber música, mas sabia de canto e era uma ferrenha admiradora da voz de Kraus. Chegara ao teatro sem avisar, a casa estava esgotada, e o contínuo achou por bem conduzi-la ao camarote da Direção. Ficou tudo esclarecido no intervalo, e Amália, simpática como sempre, aproveitou para contar ao meu companheiro os seus êxitos na Austrália, que visitara pela primeira vez dois anos antes. A última récita, agora no Coliseu, aconteceu três dias depois. Desta vez com bilhete, Amália ficou sentada ao meu lado na coxia da plateia; ao verificar que Peter estava sentado do lado oposto da coxia, ofereceu-se logo para trocar de lugar. Nos intervalos, insistiu em ficar a conversar connosco, recusando-se a atender os admiradores que a vinham cumprimentar.
A desculpa era que estava com amigos que não via há muito tempo… Foi assim que soube que antes do espetáculo tinha ido ao camarim de Kraus para lhe indicar os melhores sítios do palco para projetar a voz. A récita terminou em beleza, com intermináveis chamadas ao palco e muitas flores, nas quais se destacavam já os cravos vermelhos. Verifiquei que Amália era generosa nos aplausos. Nessa noite pouco dormi. Às 6h30 da manhã, a irmã de um capitão de Abril telefonou-me a avisar para não sair de casa, que a Revolução estava em marcha. Nesse dia assisti da varanda da minha casa a virem buscar o Presidente da República, Américo Thomaz, e família, meus vizinhos no Restelo, para o exílio inicial na Madeira. Com o aeroporto fechado, Sutherland teve de esperar vários dias em Lisboa antes de regressar a ‘Les Avants’, a sua casa na Suíça. Contar-me-ia mais tarde que teve de aguardar, aterrada, longas horas em fila e à chuva, arrastando as malas, para passar pela Segurança e entrar no aeroporto. Pedira ao São Carlos para ser paga parcialmente em dinheiro, porque queria comprar azulejos e vários tapetes de Arraiolos, que muito apreciava. (O seu passatempo eram os bordados.) O problema é que julgava que fossem muito mais caros, e por isso ficou com um monte de notas por gastar. Solução: forrar o vestido a notas de mil escudos. Com mais de 1,75 m de altura, arranjou espaço suficiente, mas o receio era que a apalpassem na Segurança.
Não aconteceu…
Chegara o momento por que ambicionara durante toda a minha vida de jovem adulto.
Em 1958, sem idade para poder votar, pedira aos meus pais um boletim Olympia de Paris ao Lincoln Center de Nova Iorque e ao Hollywood Bowl (sob a direção do fabuloso André Kostelanetz, que fora casado com a afamada soprano de coloratura Lily Pons), até ao Japão e à Austrália. Amália voltou a correr mundo, num regresso aos lugares onde fora feliz: França, Itália, EUA, Brasil, Argentina, Israel, Japão, etc.
O grande reencontro com o público português deu-se no concerto de 1985 no Coliseu dos Recreios de Lisboa; seria confirmado dois anos depois no mesmo recinto com a consagração definitiva.
Quando cantou o ‘Povo Que Lavas no Rio’, com versos de Pedro Homem de Mello e música de Joaquim Campos, a casa veio abaixo numa trovoada de aplausos: “Povo, povo, eu te pertenço/ Deste-me alturas de incenso/ Mas a tua vida não.” Os anos 1990, que marcavam os 50 anos de carreira, trouxeram-lhe novas intimações de mortalidade. Primeiro Oulman (em 1990), depois Mourão-Ferreira (em 1996) e finalmente, em 1997, o (segundo) marido e companheiro de 36 anos, o engenheiro mecânico luso-brasileiro César Seabra; todos partiram para o ‘país por descobrir’, de que falava Hamlet. Para Amália, o refúgio era a Herdade do Brejão, na costa vicentina, a sul de Zambujeira do Mar.
Tal como no poema de Fernando Pessoa sobre Dom João II, fitando “além do mar […] o mar que possa haver além da terra”, também ela enchia “de estar presente o mar e o céu”.
Pitonisa dos sentimentos e emoções portuguesas, Amália Rodrigues deixou-nos a 6 de outubro de 1999, poucas horas após o regresso a Lisboa de mais uma estadia no Brejão. Menos de dois anos depois, o corpo era trasladado para o Panteão Nacional. A voz, essa, continua a encher a terra, o mar e o céu.