A casa de Amália na rua de São Bento, onde viveu mais de 40 anos, era ela. Ela própria, com todas as euforias e depressões que se alternavam no quotidiano.Também eram os amigos e, evidentemente, as pessoas da família.
O resto era a paisagemque enquadrava essa extraordináriapersonalidade – os painéis de azulejos doséculo XVIII, lindíssimos e autênticos.Flores, muitas flores, renovadas todosos dias.
O piano de cauda com umaguitarra em cima; alguns móveis, algunsquadros, entre ao quais o inevitável retratode Eduardo Malta.
Sem esquecer, ainda,o busto de Amália do escultor Joaquim Valente que lhe fixou a pose, a atitude, osolhos próximos e distantes, a imagem demarca da consagração nas casas de Fadoem Lisboa, que a projetou em Portugalinteiro e, poucos anos depois, estendeuseàs capitais da Europa e das Américas,mantendo os vínculos com a essência deLisboa.
Talvez por isso, Aquilino, numdos seus livros, situou-a entre os mitos deLisboa, ao falar da «cidade maravilhosade Ulisses e de Amália».
Anos mais tarde– quem o diria? – ambos ficaram noPanteão Nacional.
A TERTÚLIA DE SÃO BENTO
A relação de Amália com o mundosocial e alguns artistas que frequentavama sua casa, com mais ou menos assiduidade, decorreu dos anos 40 ao princípiodos anos 60, através do ator Erico Braga. Agente publicitário de Amália, tambémorganizava as promoções do Diário de Notícias.
Colaborei, como repórter, durantevários anos, em algumas dessas iniciativas, tais como o Concurso de Construções na Areia, desde Praia de Âncora até Lagos; e, em Lisboa, o Natal nas Prisões e o Natal nos Hospitais. Assim, e a partir de 1961, comecei a ser recebido em casa de Amália.
Prolongo-se até à morte.
Pertenciam Erico Braga, com Pierre Hourcade, Vitorino Nemésio e Moses Amzalak, à direção da Aliance Française.
Daí o Diário de Notícias patrocinar a realização, no Teatro/Cinema São Luís, das semanas de teatro francês e da apresentaçãode cinema francês.
David Mourão Ferreira atraiu paracasa de Amália poetas, escritores e outros intelectuais. Muitos deles passaram dafazer parte da tertúlia de São Bento.
Era, ao tempo, David Mourão Ferreiracasado com uma sobrinha de Valentimde Carvalho, o editor dos seus discos que, a certa altura, incumbiu João Belchior Viegas para os contactos nacionais e internacionais e a preparação dos espetáculos. O mesmo aconteceu com Alain Oulman que, depois de Frederico Valério, passou a musicar as letras e a selecionar para Amália poetas contemporâneos que terminaram por integrar o seu reportório.
Basta mencionar, por exemplo, Manuel Alegre e Alexandre O Neill.
PRESENÇA DE NEMÉSIO
David Mourão Ferreira introduziuVitorino Nemésio. Foi um dos refúgios,num momento de ansiedade e desespero. Nemésio chegava antes do jantar. Vinhada rua mestre António Taborda, de umadas residências dos jesuítas e sede daredação da revista Brotéria. O Padre ManuelAntunes era um dos que lhe ouvia asconfidências.Subsistia ainda em Vitorino Nemésio aressaca de uma crise religiosa, resultantede graves problemas familiares e coincidiucom o regresso a uma prática católicarepleta de pequenos e grandes excessos.
Em vez do encontro direto com Deus, entrando pela porta principal da igreja,mergulhava primeiro no submundo dassuperstições e na praga das intrigas dassacristias. Data esta fase do início dos anos 50, e ficou documentada em dois livros O Pão e a Culpa, conjunto de poemas aoarrepio de circunstâncias; e Retrato doSemeador, crónicas e artigos de opinião,recuperados da coluna semanal que mantinhano Diário Popular.
Qualquer dos dois livros desencadearampolémica. Houve quem duvidasse dasinceridade que os ditou, e até os considerasseuma ligação política ao regime, hajaem vista a relação promíscua, escandalosae fascista entre a igreja e o Estado. Foicorajosamente denunciada na Carta do Bispo do Porto D. António Ferreira Gomesa Salazar. Essa carta da maior frontalidade religiosa e da maior coragem política – eque a tornou um documento histórico -custou, a D António Ferreira Gomes, aperseguição da PIDE e longos anos deexílio e de ostracismo.
MARGARIDA VITÓRIA,
BRAÇOS ABERTOS
Mas à medida que se ia libertando doque Fernando Pessoa classificou de «pieguicefruste» e «catolicismo campestre»,Nemésio voltou a ser outro. Os poemas do Canto de Véspera e de O Verbo e a Morte reataram a amplitude do intelectuale a dimensão humana do crente semminudências aviltantes. A paixão escaldante – e amplamentecorrespondida – por Margarida Vitória, a famosa Marquesa de Jácome Correia, desencadeou, em Nemésio, energiasamordaçadas. Amália gostou imenso de Margarida,grande mulher e grande senhora, -escorraçadae destruída pela sua própriafamília-, memória inesquecível em todosos que tiveram o privilégio do seu convívioe da sua amizade. Recebeu-a de braçosabertos.
Incorporou-a, logo, na partilhade hospitalidade.Foi nesses anos loucos de amor tardioe errático que Nemésio ofereceu a Amáliaum dos seus livros mais açorianos e maisacessíveis ao seu gosto – Festa Redonda.
O título acrescenta: «Décimas & Cantigasde Terreiro oferecidas ao povo da IlhaTerceira por Vitorino Nemésio, naturalda dita ilha».
PROJETO DE JOSÉ PRACANA
O acordo de São Luís do Maranhão,celebrado em Novembro de 1989 peloschefes de Estado e de Governo dos Paísesde Língua Portuguesa, definiu os rumosda CPLP (Comunidade dos Países daLíngua Portuguesa) e fundou o InstitutoInternacional da Língua Portuguesa.
Estavam lançadas as bases de um possívelentendimento comum.
José Pracana projetou um contributopara impulsionar a lusofonia, através deum espetáculo com Amália – apenas a voze apenas a presença de Amália – a difundiratravés do lugar simbólico da ilha do Corvo. Ambos me honraram com o convitepara escrever o texto de apresentação.Lopes de Araújo, à frente da Televisão nosAçores, deu todo o apoio.Tinha por objetivo a expansão da língua,da poesia e da música portuguesa, para todo o mundo lusófono, para ospaíses da emigração e, em especial, junto das comunidades açorianas.Amália gostava muito dos Açores etinha açorianos, entre os seus amigosmais próximos.
(Citar em pormenor?
E para quê?
Citar não é sempre omitir?…)
Deslocou-se várias vezes aos Açores, emespecial a São Miguel. Encontra-se registadaem numerosas fotografias no espóliode Gilberto Nóbrega e no espólio de ManuelLourenço, grande colecionador defotografias autografadas de artistas.
A DECISÃO DE AMÁLIA
Para o projeto inicial que se malogrou -derivando para uma incursão na história ena exaltação do Fado, com o patrocínio da Radio televisão dos Açores – Amália escolheua “Décima de Sílvio e Silvana”, poemado livro Festa Redonda, que a emocionouprofundamente.
Todavia, Alain Oulman musicava, naaltura, versos de Cecília Meireles e nãopensava noutra coisa. Amália não desistiudo poema e pediu a colaboração musicaldo seu guitarrista Carlos Gonçalves, aguardando,para logo que possível, os arranjosde Alain Oulman ou, se ele entendesse, uma versão apenas da sua autoria.
Decorrido algum tempo, porém, falecia Alain Oulman, em Paris e,consequentemente, Amália resolveugravar a “Décima de Sílvio e Silvana”.Alguns dos amigos que a visitavam conhecema decisão.
Encontro-me entre osque acompanharam, dia a dia, tudo o queaconteceu.
Solicitei-lhe uma cópia da gravação. Acedeu com todo o gosto, dando indicações (quem lembra Theresa Mimoso?)
para que me fosse entregue uma cassete.
Voltei a pedir. Pedi outra vez. Possivelmente, ainda mais outra vez. Surpreendida de não me ter sido entregue a cassete, Amália voltou a recomendar que me dessem cópia da gravação.
Mas o excesso de zelo da corte que a rodeava e a manipulava era um bloqueio contínuo. De adiamento em adiamento passaram os meses, até que surgiu o ponto final que a sua morte acabou por colocar.
EDITAR A GRAVAÇÃO
Tudo me leva a supor que essa gravação ainda permanece no espólio da casa de S. Bento, atual Fundação e Museu com o seu nome. Dirijo, portanto, um apelo ao presidente ou aos seus administradores, para que essa interpretação, até agora inédita, seja editada por ocasião do centenário. Amália transfigurava-se. A voz, logo que rompia o silêncio, conjugava o real e o imaginário. Era um suceder de espanto a espanto :
«O seu pente é um triste cardo,
a sua vida é chorar (…)
Tens sinais de anjo na cara
e de cabrinha no pé !(…)
Retraça cachinhos de uvas.
A terra dá flores de sangue,
O céu agulhas de prata;
Uma sereia escondida
Canta, canta que se mata:
‘Toca, flauta! E tu, Silvana,
Queima o teu pente dorido…
Sirva-te o mar de cabelo!’
Sílvio – navio perdido…»
A SAUDAÇÃO DE AMÁLIA
Nas estrofes daquela “Décima” (afinal 24 quadras) João David Pinto Correia, num ensaio sobre “Voz e povo na poesia de Vitorino Nemésio”, identificou a dimensão lendária de uma Sereia Melusina com sinais de Dama Pé de Cabra, mas
transformada em Bela Infanta. Para além do que João David Pinto Correia salientou e de tudo quando há de raiz e de sentimento açoriano, Amália – pude várias vezes confirmá-lo – revia-se e sentia na “Décima de Sílvio e Silvana” o seu retrato, ou o retrato que desejava ter na posteridade. A escolha do poema por Amália testemunha a admiração que ela tinha por Nemésio (e que tambem envolveu Margarida Vitória). Perdurou, na íntegra, até à morte de ambos. Nesta memória retrospetiva vale a pena transcrever a “Carta” que Amália dirigiu a Vitorino Nemésio, uma carta em versos muito coloquiais:
«Talvez que o anjo esquecido,
O anjo da poesia,
Se tenha de
mim perdido
Sem reparar que o fazia…
Por isso me faltam asas
E me sobejam as penas
De um desejo inalcançado:
Que eu gostava de voar
Até ao anjo perdido
O anjo de mim esquecido,
Que por mim é tão lembrado.
Ai se eu tivesse voado
Aonde queria voar
Não estava agora a rimar
Versos de asas cortadas.
Voava junto de si
Assim fico aonde me vê
Mesmo pregadinha ao chão
Com asas de papelão
E sem entender porquê.
Pois a uns faltam-lhe asas
Mas por ter asas cortadas
Sofrem uns e outros não?
Eu tenho sofrido muito
Nos meus voos ensaiados
Que ao querer sair do chão
Ficam-me os pés agarrados.
…E por falar dos pés
Com versos de pés quebrados
Perdoe lá a quem os fez
Pelo mal dos meus pecados.
Só os fiz por timidez
Que tenho em me dirigir
A quem tem por lucidez
Razão para distinguir
O bom e o mau Português.
Assim à minha maneira
Aqui venho responder
Desta forma tão ligeira
Que a sério não pode ser!»
A DESCOBERTA DOS POETAS
Ao recapitular mais de trinta anos de convívio, nas mais diversas situações, verificamos na Carta a Vitorino Nemésio que acabamos de transcrever o engenhopoético de Amália. E numa segunda carta a Nemésio e em versos igualmente coloquiais, Amália também voltou a manifestar um sentimento afetuoso de modéstia:
«Aí meu querido professor
eu nunca fuisua aluna,
não tenho instrução nenhuma;
como posso entender
o que o senhor quisdizer
sem saber ler, nem escrever?»
Mas a intuição prodigiosa de Amália deu voz a grandes poetas tão diferentese das mais diversas épocas da história dapoesia portuguesa.
Mencionamos, por exemplo, da lírica medieval, uma cantiga de Amigo da Ermida de São Simeão Mendinho; uma cantiga de João Ruiz de Castelo Branco, do Cancioneiro Geral; poemas de Camões o expoente máximodo Renascimento; de António Felicianode Castilho, um dos representantes dos românticos; de Guerra Junqueiro, da geração de 70; de Silva Tavares, que principiou na revista Exilio, que se insere nasequência do Orpheu e teve Fernando Pessoa,entre os principais colaboradores.
Mais próximo de nós, destacam-se as suas interpretações de José Régio, de António de Sousa e Vitorino Nemésio, do movimento da Presença e Pedro Homemde Melo, que é da mesma geração. A inventariação sumária que estamos afazer com lacunas inevitáveis abrange Alexandre O Neil, fundador do grupo surrealista; David Mourão Ferreira, um dos principais colaboradores da Távola Redonda; e, ainda, de Manuel Alegre queantes e depois do 25 de Abril se evidenciana geração de protesto e de exaltação daliberdade e do que existe de mais profundo da génese de Portugal e nas singularidadesdo temperamento e do carácter dos portugueses.
Mas neste conjunto tão amplo e tão diversificado avulta a razão, o sentido e o mistério que sempre perseguiram Amália ao construir as suas alegorias e os seus símbolos, extraídos da realidade natural: o descer da noite espalhando sombras; o olhar para o céu a aguardar uma resposta; a claridade azulada da manhã para o confrontodo dia-a-dia; o ir e vir nas espumas do mar, o soluçar nas rajadas do vento.
Toda a angústia e toda a frustração da mulher, inexoravelmente, dividida entre o orgulho e a humildade, entre o esplendor da vida e o espectro da morte.