Quando ele avança, nota-se imediatamente a sua figura imponente: alta com ombros largos e poderosos, mãos robustas e uma gravidade no seu olhar inquiridor que o atrai a si e ao mundo cada vez mais perto para sérias considerações. Um chapéu castanho, estilo Indiana Jones, cobre a cabeça deste homem aventureiro que saltou quatro vezes dos navios antes de atingir os vinte anos de idade, andou a pé e à boleia da Terra Nova para Montreal com cinquenta cêntimos no bolso no mês gelado de Novembro em 1967, esquivou-se à Imigração Canadiana, à Americana Border Patrol, e à temida PIDE de Portugal, a policia de segurança do Estado sob a ditadura de Salazar. É uma das partes da história que José da Conceição conta no livro CLANDESTINO.
Nasceu perto de Lisboa em 1948, a algumas ruas próximas das docas do rio Tejo em Portugal. Quando ainda muito jovem, decidiu que a sua vida seria uma aventura fabulosa. Não se enganou. O seu pai, ausente durante seis meses por ano em expedições de pesca do bacalhau, enviava cartas postais com desenhos de lugares distantes, despertando assim a imaginação e o apetite do filho pela descoberta.
Os filmes americanos do Far Oeste com promessas de riqueza activaram ainda mais os seus sonhos. Durante a maior parte da sua vida adulta ele trabalhou e criou os seus filhos na área de Montreal. É autor de dois volumes de poesia popular: Brumas da Memória (2003) e O Despertar da Saudade (2009). Mais recentemente, José da Conceição escreveu CLANDESTINO, uma fascinante memória-autobiografica que atravessa os períodos da sua juventude até à chegada ao Canada, e após a Revolução dos Cravos de Portugal. “…Neste livro falo do amor pela vida que pulsa em cada ser humano. Porque sei que ela vale a pena ser vivida…”
CLANDESTINO é uma narrativa única e envolvente sobre o indomável que nunca desistiu de perseguir o seu destino. É uma história da chegada adolescência até à idade adulta, com aventuras abrangendo três continentes, desde as águas geladas dos icebergues do mar do Labrador até ao mato e florestas tropicais da Guiné Bissau durante as guerras coloniais de Portugal em África. O desafio às limitações impostas pela autoridade é um dos motivos recorrentes nos episódios envolventes neste livro. O jovem José recusa-se a lavar a roupa interior suja dos oficiais do navio, e acaba por abandonar o seu navio em São João da Terra Nova, e mais tarde desobedece a um superior militar para salvar um colega soldado durante um ataque. “Revoltam-me as contra-barreiras que limitam a minha liberdade,” explica o autor no que diz respeito às múltiplas tentativas de abandonar o navio. “Não tinha dinheiro para descobrir o mundo. Qual alternativa tinha eu?” Não há vaidade para auto-engrandecer o retrato CLANDESTINO de um menino de um fundo modesto levando o destino nas suas próprias mãos. É uma leitura muito acessível, trata-se de uma história singular de vontade, optimismo e coragem unida a uma mensagem de coração sobre o sobreviver no mundo.
Apesar de ter recebido apenas uma educação formal limitada, José da Conceição está ansioso por encontrar as palavras certas para expressar fielmente a essência das suas emoções e as experiências da sua vida. Sua escrita revela um charme refrescante e uma franqueza.
“O que é que o levou a contar a sua história agora?” Estou a perguntar.
“Queria que os meus filhos e netos soubessem quem eu sou, de onde venho e o que fiz. A nostalgia provoca-me a escrever. Algumas memórias são tão fortes que o José memorizou algumas para os leitores do CLANDESTINO.
“Enquanto escrevia o livro foi doloroso ter que voltar aqueles anos de vida ilegal de medo e de incerteza. Para mim o facto de ter que reviver o sofrimento para poder relatar estas histórias deixam-me de uma certa forma orgulhoso de as ter escrito.”
Perguntei-lhe sobre um poema em Brumas da Memória intitulado Gronelândia. Após uma breve pausa e uma longa respiração ele recita o verso de cor numa voz melodiosa e ricamente musical. Escreveu-o à mais de cinquenta anos, aos 19 anos no Aida Peixoto, um barco de arrasto de pesca do bacalhau o Mar do Labrador. Gronelândia evoca uma admiração quase sagrada do mundo natural. Comenta frequentemente este poder, uma fonte para ele de ligação solitária e primitiva, particularmente nas paisagens esmagadoras e muitas vezes austeras canadianas. Ao longo dessa mesma viagem, ele viu um membro da tripulação puxado para a morte pelos cabos mecanizados que baixam as redes de pesca para as águas geladas. Ainda gravada em sua memória está a procissão solene da tripulação para enterrar o jovem entre as sepulturas de outros pescadores portugueses no cemitério de uma aldeia na Groenlândia. Alguns dias depois, José da Conceição abandonaria o Aida Peixoto em São João da Terra Nova e iniciaria a sua caminhada pelo Canadá. Um notável episódio de CLANDESTINO relata que o pai abandonou o seu próprio navio em São João da Terra Nova, e viajara para Montreal em busca do seu filho de quem não tinha notícias à quatro anos. A cena quando o pai e o filho se reuniram em lágrimas numa sumptuosa refeição para celebrarem o seu encontro, cria uma impressão quase bíblica.
Duas vezes por semana, José da Conceição encontra-se com um grupo de amigos portugueses num café de Montreal. “Questão de manter-me em contacto com a minha cultura e linguagem,” explica. Ele escreve artigos para um jornal português local e, também compõe regularmente poesia.
Apesar da sua insistência juvenil em deixar Portugal e arriscar a vida para ter sucesso na América, está profundamente ligado ao país aonde nasceu.
“A Emigração corta a relação com o seu país natal, mas eu sempre me identifico como português. Não havia liberdade sob o regime de Salazar, mas não foi por isso que parti! Foi porque sou um aventureiro e queria ver o mundo. É importante para mim, que os meus filhos e netos conheçam a sua herança portuguesa mesmo que a sua língua maternal seja francesa. Eles devem saber de onde vêm! Como é que o seu sangue se conectou num sítio especifico. Eu não compreendo as pessoas que esquecem completamente as suas raízes.”
Ele puxa por uma colecção de papeis do bolso interior do seu casaco de Inverno e lê as linhas de abertura de um poema recente. Que se intitula Navegar:
Lancei um barquinho no Tejo
Em direcção ao alto mar
E nas altas ondas me vejo
Barra fora a navegar.
Este, verso simples e popular que evoca a curiosidade juvenil e a ânsia por outros mundos, pode ser uma letra de uma canção folk tradicional. Pelo contrário, são palavras cuidadosamente notadas de um homem de 72 anos a ponderar o sentido da sua vida.
“É importante que nos tornemos o autor das nossas próprias histórias,” nota José da Conceição na capa do livro CLANDESTINO. Admite ter uma estrela da sorte para guiá-lo e a fortuna de receber ajuda de boas pessoas quando necessário. CLANDESTINO descreveu uma série de tais encontros. Pergunto-lhe se acredita que as coisas acontece por chance, ou por causa de um certo destino.
“Nascemos com destinos específicos,” responde. “Cabe a cada pessoa descobrir o que isso significa. Tentei viver a minha vida da melhor maneira que pude.” Ele pára e olha-me com aqueles olhos sérios mas generosos. “Ainda estou na aventura da minha vida. Ainda procuro e faço perguntas.”
Clandestino, por José da Conceição, está disponível no jornal A Voz de Portugal situado no 4231-B Boul. St-Laurent em Montreal.
Texto de Richard Simas