Estava a acompanhar o desenrolar das eleições nos EUA quando, no decorrer de uma das suas intervenções, Joe Biden mencionou que se fosse eleito seria o presidente de todos os americanos.
Confesso que gostei de ouvir as suas palavras conciliadoras. Quantas vezes nas nossas vidas, nas nossas comunidades, ficamos reféns de guerras estéreis e destruidoras das relações humanas por razões absurdas e pueris que poderiam ser evitadas se o bom senso prevalecesse e guiasse as nossas acções.
É deste tema, que nunca perde a actualidade, que fala esta crónica que respiguei do meu livro “O homem que falava com as flores” .
“Chegava com a sua decidida bengala de invisual a rasgar caminho e depois de duas ou três tranquilas voltas ao lago, acomodava-se no seu banco habitual. Cabeça erguida, testa alta, cabelo curto e espesso, a dar para o grisalho. Sólidos óculos escuros encavalitados no nariz aquilino e altivo a condizer com a boca talhada a cinzel e com o queixo voluntarioso. Era homem que não despertava o habitual sentimento de comiseração geralmente associado à sua deficiência. Antes pelo contrário, o seu rosto liso irradiava uma serenidade limpa que causava admiração.
– Olá – disse eu, quando me sentei ao seu lado.
– Olá, amigo – foi a sua resposta, num francês bem modelado mas que denunciava raízes distantes que não consegui identificar. O sorriso aberto mostrou as fiadas de dentes brancos e fortes.
Depois, fiquei a olhar o vogar dos patos no lago. Ele continuava de cabeça erguida a observar sabe-se lá o quê. Corria uma tarde serena com muita luz a derramar-se entre o azul do céu e o verde da relva.
– Está um belo dia.
– Se está – respondeu-me. – Esta abundância de sol faz-me recordar a minha ilha de Chipre.
– É cipriota?
– Cipriota turco.
– Parece um homem feliz, mesmo longe da sua ilha.
– Agora sou. Mas nem sempre foi assim. Desde que ceguei, sou muito mais feliz.
– É estranho. Geralmente, acontece o contrário.
– Diz bem, mas no meu caso foi diferente. – Tirou os óculos e fixou-me com uns olhos castanhos e brilhantes que me pareciam ver claramente. – Eu era um homem amargo, cheio de rancor, com um ódio visceral, que bebi com o primeiro leite, contra os gregos da minha ilha, e que, pouco a pouco, foi alastrando, como lepra, até se transformar numa aversão patológica e já não poder suportar a presença do mais mísero ser humano. Chegou a tal ponto que já não era sangue mas sim veneno o que me corria nas veias. Uma lava calcinante, auto-destruidora. Fugi da minha ilha, exilei-me nestas terras, mas nem mesmo essa fuga desesperada conseguiu sarar o meu mal. E certa noite tresloucada de raiva irreprimível, supliquei ao Senhor que me cegasse e me livrasse de tamanho sofrimento. Na manhã seguinte acordei cego. Irremediavelmente cego. Como deve calcular, o mundo desmoronou-se à minha volta. Vivi dias, meses a fio, perdido na mais completa escuridão. Até que certo dia, inesperadamente, uma luz acendeu-se dentro de mim. A princípio era uma chama vacilante, muito frágil, mas que, gradualmente, foi ganhando forças até se transformar no archote que varreu as sombras e iluminou, finalmente, o meu caminho. Hoje, vejo o mundo com os olhos do coração e, acredite, a minha visão é muito mais clara do que antigamente.
– Já não tem raiva aos gregos da sua ilha?
– Como poderia odiá-los? Nascemos todos no mesmo berço, bebemos a água das mesmas fontes, percorremos os mesmos caminhos, fomos beijados pelo mesmo sol e pela brisa do mesmo mar, acordámos embalados pelo trinar das mesmas aves. Só por não falarmos a mesma língua? Acredite, eu vivia mergulhado nas trevas mais profundas. Só agora, com os olhos do coração, é que consigo ver além das aparências e compreender que os homens são todos irmãos, filhos do mesmo Deus. Quando despertamos para esta revelação, não podemos deixar de ser felizes.
Calou-se.
A bengala raspava, ao de leve, o chão. A mansidão da tarde escorria sem pressas. Era a hora propícia para eu digerir as sábias plavras do homem.
Escrito Por: Manuel Carvalho