Na semana em que o porta-voz do Presidente Jair Bolsonaro, Otávio Santana do Rêgo Barros, anunciou que o seu teste de coronavírus era positivo, o Brasil — maior país da América Latina, com 210 milhões de habitantes — tornou-se a terceira nação no mundo a registar maior crescimento das infeções.
Os 135.106 casos confirmados quinta-feira não retratam, contudo, a degradação dos corpos sepultados em valas comuns, mesmo que os números oficiais estejam longe dos dos Estados Unidos e da Rússia, líderes desta classificação. No mesmo dia, o Brasil ultrapassou a barreira dos nove mil mortos, com mais 610 vítimas do coronavírus no dia anterior, e uma letalidade de 6,7%.
O porta-voz presidencial, general de 59 anos, é símbolo dos dois maiores riscos que o Brasil enfrenta: rápida progressão da pandemia e a imensa incógnita sobre a atitude dos militares em relação ao chefe de Estado.
“O Brasil de Bolsonaro já tem, proporcionalmente, mais militares como ministros do que a vizinha Venezuela, onde há muito tempo as Forças Armadas abdicaram da neutralidade e se tornaram fiadoras da permanência de Nicolás Maduro no poder”, escrevia a BBC Brasil a 26 de fevereiro, quando Bolsonaro pregava ao mundo que o coronavírus era uma “gripezinha”, sugerindo que a então epidemia ficaria apenas na Europa.
“Os militares controlam oito dos 22 Ministérios do Governo (36,36%). Na Venezuela comandam dez dos 34 Ministérios (29,4%)”, explicava a emissora britânica.
“Os militares podem ficar desagradados com as atitudes do Presidente, mas sabem que estas reforçam a adesão dos apoiantes, que veem incentivos à ação em frases como ‘E daí?’ ou ‘Lamento, quer que eu faça o quê?’ com que Bolsonaro reagiu ao aumento do número de mortos. A situação é muito cómoda para os militares, que não sofrem o desgaste das polémicas junto da opinião pública.
Controlam de fora, sem se exporem”, diz ao Expresso o filósofo Vladimir Safatle, professor de Teoria das Ciências Humanas na Universidade de São Paulo. Comentador político e ex-colunista da “Folha de São Paulo”, aos 46 anos está a recuperar da covid-19.
Atento ao que se passa fora da janela, acusa Bolsonaro de governar “para a sua minoria”.
O perigo dos subalternos
No Rio de Janeiro, em confinamento, Octávio Amorim Neto, catedrático de Ciência Política da Fundação Getúlio Vargas, avisa: “As Forças Armadas estão numa situação extremamente ambígua dentro do Governo.
Por um lado, oito ministros são militares e há mais de dois mil oficiais no ativo ou na reserva em funções civis no segundo e terceiro escalões da administração federal”, ou seja, no aparelho do Estado. “Por outro, o alto comando das Forças Armadas, sobretudo o do Exército, esforça-se por diferenciar a instituição militar do Governo. É uma situação muito turva e complicada, que vai gerando riscos crescentes de atores menores tomarem decisões mais ousadas em apoio ao Presidente.
O processo político pode degenerar numa grande crise política.”
“Até ao momento, os comandantes da Marinha, Exército e Força Aérea têm conseguido dar o tom nos seus ramos. Porém, o que acontecerá se oficiais de nível médio começarem a manifestar- se sobre assuntos políticos? A integridade das Forças Armadas estará sob risco. Numa situação tão tensa como a que vive o Brasil, pode- -se facilmente perder o autocontrolo”, prossegue Amorim Neto.
Não crê no risco de estes “atores menores” sustentarem a transformação do bolsonarismo num regime militar de fachada civil: “Pode até ser o desejo dos mais radicais, mas as Forças Armadas já deixaram claro que não tolerarão esse tipo de aventura. Infelizmente, Bolsonaro tem procurado associá-las à sua gestão para dissuadir os poderes legislativo e judicial de imporem limites aos seus excessos.
Essa associação não se faz apenas com a nomeação de milhares de militares para cargos executivos, mas com a frequente presença do Presidente em cerimónias militares”. Safatle vê “uma racionalidade cruel detrás das atitudes [do Presidente]. Bolsonaro não é negociador, é jogador, tem sobretudo o apoio da base do Exército. O seu horizonte é um golpe militar ou um governo de milícias. Tem muito apoio na polícia. O dramático da política brasileira é que a oposição morreu, decompôs-se. O embate hoje é entre direita e extrema-direita. E se não der certo, os militares têm no [vice-presidente] general Mourão um plano B”. A comunidade internacional está cada vez mais preocupada com o errático comportamento de Bolsonaro face à pandemia. O alerta foi dado pela revista médica britânica “The Lancet” no seu editorial desta semana: “Talvez a maior ameaça à resposta do Brasil à covid-19 seja o seu Presidente.” Acrescenta que “o Brasil tem de se unir para uma resposta clara ao ‘E daí?’ do Presidente. Bolsonaro precisa de mudar drasticamente de rumo ou terá de ser o próximo a sair”. Pior, “a população brasileira não entende os sinais enviados pelos militares. Há sinais equívocos e défice de informação”, comenta Jonas Medeiros ao Expresso.
Oposição só nas redes sociais
Para este investigador do Núcleo Direito e Democracia do Centro Brasileiro de Análise e Planeamento, a “situação vai piorar, do ponto de vista da saúde pública, económico e político, e os militares terão de tomar posição. Segunda-feira houve o rumor de que Bolsonaro ia demitir o comandante do Exército, um militar muito legalista que se tem mostrado preocupado com a pandemia. Seria um sinal claro de ideação golpista. Neste momento não é possível contar com manifestações de rua, que põem em risco a vida das pessoas.
Quem ocupou as ruas foram os defensores de Bolsonaro, negacionistas do vírus. A oposição faz-se nas redes sociais. E batendo panelas nas janelas, mas é pouco. Se não houvesse pandemia, acredito que haveria mais manifestações e que Wilson Witzel e João Doria [governadores do Rio de Janeiro e de São Paulo, respetivamente] não colocariam a Polícia Militar contra os manifestantes. Estamos dependentes de acordos nos bastidores da elite. E na expectativa de que os militares não se radicalizem”. Há perigo de interferência do Presidente no poder judicial. Em Brasília, a semana fica marcada pela ida de uma comitiva de empresários e ministros, chefiada por Bolsonaro, ao Supremo Tribunal Federal. A pretexto de “visita de cortesia”, o grupo atravessou a pé a Praça dos Três Poderes e, no Tribunal, abordou a necessidade de acabar com o isolamento social, regressando à plena atividade económica. Contrários ao desconfinamento, que tem altos riscos sanitários, governadores estaduais como os de São Paulo, Maranhão e Pará, reforçam as medidas restritivas.