JORGE SAMPAIO 1939-2021

Comentário ao artigo “JORGE SAMPAIO 1939-2021” PUBLICADO no jornal “A VOZ DE PORTUGAL” EM 14-9-2021”
O falecimento de Jorge Sampaio – que foi dirigente estudantil na década de 60, resistente antifascista, fundador do Movimento da Esquerda Socialista e do Grupo de Intervenção Socialista, secretário de estado, dirigente e secretário-geral do PS, presidente da câmara municipal de Lisboa e presidente da República durante 10 anos – foi ocasião que o Senhor Jorge Correia (cronista do jornal) achou que vinha a calhar para prosseguir com a sua polémica ideologicamente marcada contra os princípios políticos que atribui ao Falecido, ao PS e à esquerda em geral e que, segundo a sua opinião, são o obstáculo maior à resolução satisfatória dos principais problemas do país.
Analisemos o seu artigo nos seus pontos essenciais.
Diz ele que o “desaparecimento do ex-presidente Jorge Sampaio” o fez recordar o “homem que lutou pela esquerda, o homem preocupado com a condição humana”.
Desta frase retiro a ideia de que o cronista estabelece uma relação de correspondência entre a preocupação com a condição humana e a esquerda politicamente ou ideologicamente considerada.
Assim, se numa das proximas eleições aparecer por exemplo um partido inititulado Iniciativa Canibal (I.C.), ou outro que dê pelo nome de Frente Eleitoral dos Escorpiões (F.E.E.) ou de Víboras e Lacraus Associados (V.L.A.) teremos concerteza de reconhecer, segundo o próprio critério do cronista, que esses hipotéticos partidos serão necessariamente de direita.
Esta hipótese, de uma destas possíveis agremiações políticas ser registada para fins eleitorais, ter direito a tempo de propaganda gratuita na TV e, eventualmente alguns deputados na Assembleia da República só não se verifica porque ainda há um limite, embora cada vez mais frágil, ao que o eleitor comum, mesmo distraído, está disposto a engolir. A multiplicação demencial dos partidos reconhecidos oficialmente nos últimos anos não augura nada de bom neste campo. E o pior é que se não estou em erro, alguns dos atrás citados já figuram no parlamento actuando embora sob pseudónimo.
Temos pois, para rematar sobre este ponto, que o cronista identifica a esquerda com o homem preocupado com a condição humana. Pela nossa parte estamos de acordo a 100% mas é possível que alguma gente de direita rejeite este monopólio de peoocupação e reivindique também um bocadinho para si.
Um pouco mais adiante estabelece o cronista outra correspondência, esta entre oposição ao regime salazarista e posicionamento político à esquerda, correspondência historicamente justa em 99% dos casos e que em Sampaio seria “natural”. Devemos assim deduzir que a “esquerda política” é continuadora “natural” da resistência ao salazarismo em que as forças de esquerda predominavam de forma esmagadora. Mas então de que lado estava a direita no tempo da ditadura? E de que é que a direita actual é continuadora? A resposta não é evidente?
Mais uma vez concordo inteiramente com essa filiação (da esquerda à oposição à ditadura) mas duvido que mais este monopólio da esquerda deixe muito contentes alguns dos que se reclamam de direita.
Depois… depois o verniz quebra-se, parte-se em mil pedaçcos, isto é: sai o gato do saco, como diz o povo.
Depois de falar na “bonomia do seu carácter”, (de Sampaio note-se, não do cronista) este opõe a atitude que lhe atribui (a Sampaio) como uma “lição para o PS actual, cuja falência moral é espelhada diariamente com a mais despudorada naturalidade”. Palavra do cronista. Assim mesmo com a “despudorada naturalidade é espelhada a falência moral do PS actual”. Nem mais nem menos. É o cronista Jorge Correia que escreve e quem quiser que faça fé nele, que o acredite sob palavra.
Eu acredito que esta linguagem deve ser a linguagem comum dos energúmenos que molestaram Ferro Rodrigues, presidente da Assembleia da República, uma linguagem que, só por si, caracteriza um inimigo da liberdade, isto é, um agente do despotismo. Ou um ideólogo fanatizado do Trump ou do Bolsonaro. É a linguagem do Senhor Jorge Correia, cronista do jornal “A Voz de Portugal” de Montreal.
E assim o mote está dado.
Depois é so recitar o catecismo que ele não se cansa de repetir: “dificuldade dessa geração de políticos de esquerda em compreender e aceitar os príncipios mínimos de economia” diz. Como se o PS alguma vez tivesse feito outra coisa do que “compreender e aceitar” na prática como na teoria, esses princípios bem mínimos.
Quais sejam esses princípios e esses mínimos é que é o verdadeiro problema. Parece que nem o presidente dos Estados-Unidos e as multinacionais americanas estão muito de acordo entre si sobre certos princípios mínimos de imposto às multinacionais através do mundo. Quer agora o Senhor Jorge Correia estabelecer princípios mínimos? O mínimo do salário do trabalhador, por exemplo? Ou o máximo do PDG ou do accionário? Ou cortar as asas aos capitais que fogem para os paraísos fiscais? Ou assegurar um financiamento adequado dos serviços de saúde e de educação? Ou financiar, como a situação o exige, a transição energética de que depende a vida da Humanidade sobre o planeta?
Tudo isto são questões que não se enquadram com a sua visão redutora dos “princípios mínimos de economia”.
Em economia há tantas opinioes como economistas e mesmo aqueles que não são economistas como o cronista e o autor destas linhas têm algumas ideias sobre economia. Embora incontáveis, as principais correntes reduzem-se essencialmente a dois polos: o da economia do trabalho e o da economia do capital. Cada economista individualmente considerado representa uma nuance de um ou outro destes dois polos. Em qual deles é que o cronista se situa?
Vitupera o cronista a frase “há mais vida para além do défice” ou “há mais vida para além do orçamento”. E lamenta-se que “ainda hoje temos o PS, em coligação com o PCP e o Bloco de Esquerda” “persistindo no princípio errado” de “não compreender os princípios mínimos de economia”.
Esses “princípios mínimos de economia” exactamente porque mínimos e de economia não podem deixar de ser redutores precisamente porque encaram o homem e a sociedade por uma só das suas dimensões (a dimensão económica) e não só uma só dimensão mas essa dimensão tal como ela existe actualmente.
A minha pregunta será assim: queremos nós, devemos nós e podemos nós, humanos, sabendo o que sabemos do estado da economia mas sobretudo do estado da sociedade e do estado ecológico do planeta, continuar a subordinar a vida de todos e de cada um à economia (e não a uma economia qualquer, à economia actual, à economia do capital) ou, ao contrário, deve a vida de todos e de cada um primar sobre a economia e, desde logo e em primeiro lugar, sobre a economia do capital?
Eis as questões que me parecem dever ser abordadas e que um cronista político deveria estudar honestamente e sériamente em vez de repetir semana após semana o catecismo estafado do Santo Mercado, da Santa Empresa e do Santo Cifrão. A actual pandemia deveria ter-nos ensinado a todos que há muita coisa muito mais importante do que a economia, pelo menos do que a economia tal como ela tem sido imposta desde Thatcher e Reagan até à actualidade. Alguns dos principais governos têm dado alguns sinais, embora frágeis e precários, de se ter começado a esboçar uma resposta menos má do que as seguidas até agora por praticamente todos os governos, de todos os países e de todos os partidos, incluindo o de Jorge Sampaio, nos ultimos 40 anos. O abandono do dogma do equilíbrio orçamental, a proposta de Biden para o imposto sobre as multinacionais e a retirada dos Estados-Unidos do Afganistão pondo termo a 20 anos de guerra, são alguns dos sinais que nos levam a crer que podemos estar a entrar numa nova etapa. Os ideólogos dogmáticos atacados de psiticismo continuam aquilo que só sabem fazer que é repetir ad nauseam as lições da catequese respectiva, afectando desprezar o significado dos factos que as refutam. No entanto, a vida em todas as suas dimensões acaba sempre por triunfar, relegando ao caixote do lixo da História todos os dogmas e todos os doutrinários.
Como muito bem cantava o grande artista que foi José Mario Branco, também há pouco desaparecido, na canção que tem por título “Qual é a tua, ó meu?” também nós devemos dizer “P’ra esse peditório o pessoal já deu!”

Escrito por Fernando Costa