Fica o tributo necessário e a memória de quem parte. Fica a emigração, a viagem e o luto. Fica mais um embalo no berço da açorianidade
Após tormentosa viagem no Atlântico Norte, entre os Estados Unidos da América e a açoriana ilha da Terceira, o vapor atracou no molhe da cidade de Angra do Heroísmo.
O século XX tinha dezanove anos. Faustina Cardoso Ventura, com apenas dezassete anos de idade – casara com catorze – viajava com o marido de vinte e sete anos e com o filho de apenas um ano de idade, desde o Vale de São Joaquim, na Califórnia. Os emigrantes açorianos das ilhas do grupo central do arquipélago escolhem, predominantemente, a Califórnia para terra de fixação, enquanto os do grupo oriental optam quase sempre pela costa leste norte-americana.
Decorria o ano de 1919, tempos do velho vapor e das travessias atlânticas morosas e inseguras. Os passageiros embarcavam na incerteza da travessia. José Gonçalves Margarida, marido de Faustina, se adivinhasse não teria subido a amurada do navio de bandeira italiana que o transportaria e aos seus à ilha Terceira. Durante a longa viagem, foi acometido de um ataque cardíaco fulminante que lhe tirou a vida. O seu corpo foi sepultado no Atlântico.
Faustina, com o bebé nos braços, inquieta, todos os dias perguntava à tripulação pela sorte do marido, que lhe havia sido levado pela marinhagem para a ala de cuidados médicos. As respostas eram evasivas. “Senhora, o seu marido está sendo tratado.” Quiseram certamente poupá-la ao desgosto da morte de José, naquele contexto de solidão. O comandante dera ordens para que o falecimento só lhe fosse comunicado com o navio atracado ao molhe de Angra.
José era oriundo de uma família tradicional da freguesia da Ribeirinha, no Concelho de Angra do Heroísmo, da Terceira, os Margarida, que o esperavam no cais. Ia apresentar-lhes a jovem mulher e o filho. Não viveu para a intensidade do momento. As lágrimas foram de luto, não do reencontro ansiado.
Face à desdita, a jovem viúva, Faustina, quis regressar ao Vale de São Joaquim, mas os sogros, que do filho roubado à vida apenas restava o bebé, pediram-lhe insistentemente que ficasse. Aceitou. Vestiu-se de preto da cabeça aos pés e enclausurou-se dentro da casa por longos trinta e quatro anos, longe dos pais, fixados na Califórnia.
O menino, também chamado José, criou-se com a mãe e os avós paternos. Curiosamente tornou-se o homem mais alto da freguesia, da ilha e, muito provavelmente, de todas as ilhas. O rapagão era tão alto que a freguesia lhe atribuiu o epíteto de José Grande. Foi conhecido ainda pelo gigante da Terceira.
José Gonçalves Margarida, apesar de ser um forte homem e uma figura de estilo na ilha, manifestou-se um cidadão pacato e um amigo extremoso da sua mulher, Maria de São Tomás, a Marquinhas, como era conhecida. Na freguesia da Ribeirinha, era comummente atribuído às mulheres o apelido de Marquinhas.
Generoso para com a sua freguesia e cheio de espírito de serviço, José grande fundou a Casa do Povo, o salão do teatro, mais conhecido por Casa da Lata, e a Cooperativa de Laticínios da Ribeirinha. Como bom terceirense, era um devoto de toiros e aficionado incondicional da tauromaquia. Foi ainda um amante do futebol e provou-o ao fundar o grupo de futebol “Os Leões” da Ribeirinha. José Grande foi ainda um lavrador bem-sucedido.
Mas a história não acaba aqui. A importância que José atribuía aos outros granjeou-lhe um incontável número de amigos, tanto na Terceira, como nas outras ilhas do grupo central do arquipélago. Por exemplo, em São Jorge, a denominada ilha das fajãs, vizinha da Terceira, cultivou uma amizade muito especial, com José Inácio de Sousa, o popular anãozinho do Toledo, da freguesia de Santo Amaro, Concelho de Velas. Surpreendentemente, José Inácio media noventa e cinco centímetros de altura, fator que não lhe impediu de tocar a vida para a frente. Foi merceeiro e servia os clientes de cima de um estrado em madeira que montou em todo o comprimento do balcão da mercearia, permitindo-lhe ficar à altura da clientela. Embora anão, o jorgense tinha um caráter forte e sabia impor-se perante os gozões, que surgiam a todo o momento. Um dia “desamanhou-se” (termo jorgense) com um velhote que lhe disse que lhe puxava as orelhas, respondendo-lhe astutamente o pequeno José Inácio que “Deus [dera] inteligência aos homens para inventar a pólvora e o chumbo”. Face à ousadia da resposta, amedrontado, o velho valentão pôs pés ao caminho. “Os homens não se medem aos palmos.”
David Valadão, o açor-americano originário da Ribeirinha, na Terceira, residente nos Estados Unidos, que até há dois anos foi Senador da Casa Branca – um orgulho para os Açores – disse-me ontem ao telefone ter um enorme apreço pela história do seu avô, José Grande, o gigante, e pela dos seus bisavós, o desditoso José, falecido em 1919, e a consternada Faustina, falecida em janeiro de 1975, tanto que, presentemente, desenvolve uma cronografia destes antepassados. José Grande deixou-nos em 2005 e aos seus três filhos, Fátima, António e José.
Fica o tributo necessário e a memória de quem parte. Fica a emigração, a viagem e o luto. Fica mais um embalo no berço da açorianidade.
Texto de João Gago da Câmara