Reza a lenda que, há séculos atrás, religiosas de um convento localizado na zona da Caloura, vila de Água de Pau, da ilha de São Miguel, descontentes com o cada vez maior afastamento do povo local da sua igreja, escreveram ao Santo Padre a pedir-lhe o envio de uma imagem que unisse em adoração o povo infiel
Flores e passos lentos, um ruído interminável que é de arrasto e um perfume flóreo que enche o ar. E gente. Muita gente. Magotes, como a ilha diz. Ei-la, a procissão, lenta mas segura, introspetiva mas expansiva, humilde mas magnânima, porque a imagem de Deus homem caminha sobre tapetes floridos entre os fiéis. No domingo incensado e único, a ilha esvazia-se e a cidade transborda.
A paramentaria é a opa, que inunda as ruas de rubro. Vestem-na guardiões do Senhor, que, sucessivamente, em marcha reduzida e seguindo uns atrás dos outros, exaltam a figura maravilhosa.
Guardada durante 364 dias no seu Santuário, a imagem veneranda do Senhor Santo Cristo dos Milagres sai à rua num domingo de maio, em apelo à fé divina. E quando sai para o adro da igreja e se mostra aos presentes, que ansiosamente a aguardam, foguetes rasgam os céus, ribombando, e repiques de sinos altaneiros unificam-se com hinos de glória entoados por filarmónicas que chegam de todos os cantos da ilha. Acontece nesse domingo de maio a exaltação comunitária e o regozijo de um povo todo.
Esta tradição, que remonta a 23 de abril de 1541, com a abertura ao culto do Convento da Esperança, localizado no Campo de São Francisco, em Ponta Delgada, por Madre Teresa da Anunciada, uma religiosa originária da Ribeira Grande, em 479 anos de realizações ininterruptas, não acontece este ano pela primeira vez. A pandemia não o permitiu. Estaria este vazio preparado desde os primórdios dos séculos? Quis Deus parar para que parássemos com ele e repensássemos estilos de vida?
Marca esta história indelével, porque de uma fé inabalável, todo um movimento popular de séculos, que sai de um Santuário para a cidade, da cidade para a ilha, da ilha para todas as ilhas e para o continente português; do arquipélago açoriano para as Américas, Canadás e Bermudas de emigração, e, como um vórtice, sorve a fé de todo o lado. Aviões enchem-se de continentais que trazem fome de recolhimento e de espiritualidade e tanto voam de leste como de oeste. Cruzam, incansavelmente, o Atlântico Norte, transportando para a ilha o emigrante e a saudade.
A festa religiosa e profana é notícia na região, no país e no mundo. O Senhor Santo Cristo dos Milagres está para a açorianidade como Fátima está para a portugalidade, e maio junta estes que são os dois maiores eventos religiosos do país. Ambos, pela primeira vez, não se realizaram face ao inimigo invisível. Restam penitentes que, enquanto escrevo este texto, calcorreiam o campo de joelhos nus, deixando generosamente no Santuário ramos de flores e velas.
Reza a lenda que, há séculos atrás, religiosas de um convento localizado na zona da Caloura, vila de Água de Pau, da ilha de São Miguel, descontentes com o cada vez maior afastamento do povo local da sua igreja, escreveram ao Santo Padre a pedir-lhe o envio de uma imagem que unisse em adoração o povo infiel. A Santa Sé respondeu positivamente e enviou uma imagem. Todavia, os mares açorianos, então pejados de piratas, intercetaram a nau que a transportava, afundando-a e à tripulação e passageiros. O caixote de madeira que a trazia, miraculosamente, escapou ao saque e, boiando nas ondas, veio encalhar junto ao convento da Caloura. As religiosas, surpreendidas, recolheram a imagem do Senhor Santo Cristo dos Milagres.
Por muitos anos, a imagem foi venerada no Convento da Caloura, mas, por segurança, as freiras mudaram-na para o Convento da Esperança, em Ponta Delgada, acompanhando-a. Existe uma segunda versão que refere que duas freiras açorianas se deslocaram a Roma e trouxeram com elas a imagem. O facto é que em Roma não existe registo de nenhuma destas situações. De onde veio a imagem? A questão não tem resposta desde há quase quinhentos anos.
Para tristeza de muitos milhares de devotos, a grande festa religiosa açoriana não se realizou em 2020, mas, como refere à Visão o Reitor do Santuário do Senhor Santo Cristo dos Milagres, Cónego Adriano Borges, “o Senhor Santo Cristo não está enclausurado no Convento, porque a única clausura que Ele reconhece é o nosso coração”.
Texto de: João Gago da Câmara