Eu estive lá. Ainda há algumas centenas de milhares de portugueses que o podem dizer. Que serão, obviamente, cada vez menos… E, enquanto é tempo, também digo: eu estive lá. Não vou usar adjetivos para tentar exprimir agora com que deslumbre, porque disso deixei registo. Lá irei.
Refiro-me ao primeiro 1º de Maio, o de 1974, uma semana após o 25 de Abril. Sua festa, sua consagração, sua transformação de um movimento militar libertador numa revolução democrática e popular de uma nação inteira. Com a simultânea afirmação do seu caráter progressista e do direito à independência das colónias – o que então ainda era, mesmo para alguns opositores da ditadura, uma dúvida, uma questão em aberto.
Mas a que propósito vem isto, no que aparenta vir a ser, pelo título genérico, uma espécie de caderno com anotações ou opiniões mais ou menos de ocasião, variadas e despretensiosas? Vem porque este “Bloco-Notas” decerto será também, algumas ou muitas vezes, uma espécie de caderno com “histórias da memória”. Como afinal acontece já com estas linhas, ficando para outra oportunidade contar porque escolhi tal título. E acontece já com estas linhas porque passam hoje 46 anos sobre esse primeiro 1º de Maio. E porque, por força da funesta Covid 19, o 1º de Maio de 2020 é naturalmente quase o avesso do de 1974…
Havia, em relação a esse já distante dia, uma enorme expectativa. Numa mistura de fantástica esperança de ser uma grande manifestação, com o povo na rua a festejar maciçamente a liberdade conquistada e a homenagear o Movimento das Forças Armadas, os “capitães de Abril”, e de temor de que ela não tivesse tal dimensão ou que houvesse provocações, incidentes, que a ensombrassem. E havia também a muita curiosidade de ver/ouvir pela primeira vez os principais líderes da Oposição Democrática, com destaque para Mário Soares (Soares conhecia-o bem, amigo e colega mais velho) e sobretudo para o ‘lendário’ Álvaro Cunhal.
Falei em expectativa. E foi ultrapassada a que a mais otimista mente pudesse ter criado. De toda a parte surgia gente, gente e mais gente, de todas as proveniências, condições, idades. Foi-se formando um cada vez mais caudaloso, impetuoso e imparável rio de povo. A dominar tudo, um indescritível sentimento de liberdade e uma imparável, inigualável, alegria. Palavras de ordem, as mais diversas e desencontradas: os sindicatos, poucos, e os os partidos, muito menos, ainda não tinham a organização e importância que viriam a ter – de facto, só no PCP havia já uma estrutura, que vinha da clandestinidade.
Mas entre as palavras de ordem, de pessoas sozinhas ou de pequenos grupos que espontaneamente se iam formando, algumas bem criativas ou de uma ingenuidade tocante, avultavam, de forma talvez surpreendente, as alusivas ao fim da guerra e à independência das colónias. A elas se juntando, ou com elas se misturando, as cantigas que cada um ou cada grupo entoava. Desde as de excelência do José Afonso, dos “Vampiros” e da “Grândola” ao “Venham mais cinco”, até ao esquemático “Canta canta, amigo canta,/ vem cantar a nossa canção/ tu, sozinho, não és nada/ juntos temos o mundo na mão”, de um António Macedo que mais tarde como cantautor desapareceu.
O culminar de tudo foi, claro, no Estádio nesse dia ‘batizado’ como 1º de Maio – que antes era da corporativa Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho (FNAT). Com um comício com várias intervenções – nenhuma de um “capitão de Abril”… -, com realce para as de Soares e Cunhal. As duas, tem hoje a frio de se reconhecer, estiveram muito longe de ser brilhantes, ou mesmo boas, quando comparadas com outras que ambos fariam mais tarde. Era a falta de prática, mesmo uma estreia… Mas naquele ambiente entusiástico, emocionado e emocionante, que importância é que isso tinha? E, muito mais do que dessas intervenções, e das quatro ou cinco que as precederam, o que me ficou mais na pele e na memória, como decerto ficou na da maioria dos que ali estiveram, foi esse ambiente, esse clima, gestos, episódios, imagens de gente anónima.
Poderia dar exemplos, mas seria excessivo fazê-lo. Fica, pois, a fechar, o tal registo, um poema escrito na altura, e incluído no meu livro Poemas para a revolução (1975), que junta três livros anteriores esgotados, o De poema em riste (1970), que a Censura tinha proibido e a Pide apreendido, e versos inéditos escritos antes e imediatamente depois do 25 de Abril.
Não voltei a publicar esse poema.
Fica aqui como documento e testemunho de como senti, à semelhança de muitíssimos mais que tiveram a felicidade de o viver, esse dia único e irrepetível da nossa democracia e até da História do século XX português:
Mil? Cem Mil? Era um milhão,
era um povo inteiro
a gritar, a cantar, de braço dado, pelas ruas,
era um grande mar de festa e entusiasmo,
era um cheiro bom e rubro a céu azul
era a indomável explosão do mês de Abril.
Mil? Cem Mil? Era um milhão,
era um povo inteiro
com um sol matinal despontando no olhar,
no primeiro 1º de Maio
ao sétima dia de Portugal.
Mil? Cem Mil? Era um milhão,
era um povo inteiro
com a fronte de frente para o futuro,
era o instante mais puro, o esplendor da vida,
era uma pátria no coração da primavera.