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A VOZ DE PORTUGAL | 24 DE MARÇO DE 2022  | 3                                     CRÓNICA
        Os valentões




                       JORGE CORREIA                     perdem a vantagem perdem também a valentia. É fácil  julgado com alguma severidade. Não julgo Cham-
                       Cronista do jornal                ser-se valentão quando se está em vantagem. Recordo-  berlain dessa forma, pois acho que todos os recursos
                                                         -me de um episódio quando era jovem adolescente,  diplomáticos devem ser esgotados e mesmo em situa-
                            ermitam-me que esclareça  na escola que frequentava havia dois conhecidos za-  ção de conflito deve a porta estar aberta a um entendi-
                            logo de início que qualquer  ragateiros que um dia se intrometeram num jogo em  mento, entendimento este que não deve ser a qualquer
                      Pguerra é algo que nos deve re-    que participávamos. Inicialmente eu fui o único que  custo. Devemos dar toda a hipótese a um entendimen-
                      pugnar e nunca deve ser recurso que  coloquei resistência pois eram conhecidas as suas pos-  to. É fácil julgar Chamberlain quase um século após
                      pensemos usar. A barbárie nunca foi,  turas intimidatórias e mesmo violentas. Subitamente  a segunda guerra mundial. Na altura quantos de seus
                      não é e nunca será solução.        fui atacado pelas costas por um deles, enquanto o ou-  críticos atuais teriam feito a mesma coisa? Ser valen-
         No entanto, seguindo aquela máxima de que deve-  tro se preparava também para entrar no confronto. De  tão é fácil sentado do sofá, olhando para os noticiários
        mos esperar o melhor mas ao mesmo tempo prepa-   todos que assistiram apenas um, e repito um, interveio  ou olhando para o passado em que muitas vezes não
        rarmo-nos para o pior, não devemos descurar as nos-  a meu favor, mas foi o suficiente para deixar os dois  participámos. Difícil é sermos valentões e racionais no
        sas defesas e acima de tudo não devemos abdicar de  zaragateiros confundidos pois subitamente perderam  meio da tormenta e estarmos dispostos a abdicar do
        determinados princípios de humanidade em prol de  a vantagem e a valentia se esfumou em pleno ar. Ra-  nosso conforto e segurança porque algum nosso se-
        facilidades e comodidades económicas e financeiras.  pidamente se afastaram, entre promessas que se vin-  melhante se encandeou nas malhas do despotismo e
        A nossa moral e ética não devem ser corrompidas. A  gariam dentro ou fora da escola. Esta vingança jamais  orgulho desmedidos.
        guerra e suas consequências marcaram a minha famí-  se realizou pois, como todos os “valentões” que vivem
        lia entre muitas outras pois sou parte do grupo de re-  da intimidação, sentiram-se em desvantagem e jamais
        tornados que tiveram que escapar de África devido a  voltaram a incomodar. Infelizmente há seres humanos
        uma descolonização catastrófica em que portugueses  que se deixam resvalar para o instinto animal tolda-
        foram abandonados à sua sorte, deixando para trás vi-  do pelo narcisismo orgulhoso. E quando isso acontece
        das com décadas e alguns mesmo séculos de existência  desde essa hora eles se isolaram de qualquer raciona-
        em terras africanas. Portanto, conheço de perto essas  lidade que possa existir. Muitos criticam Chamberlain
        dificuldades, ainda que mesmo assim não se compa-  pela atitude pacifista que teve com Hitler, sendo hoje
        rem com o que se passa na Ucrânia. Do conforto dos
        nossos sofás é fácil tirarmos conclusões; é fácil debitar
        sugestões e opiniões; é fácil fazermos julgamentos e
        alinharmos com outras opiniões mais ou menos es-
        clarecidas. Mas será fácil, acima de tudo, estaremos
        dispostos a assumir as consequências dessas opiniões?
        Em alguns inquéritos, não só aqui no Canadá como
        nos EUA, há um grande apoio popular relativamente
        ao apoio que se deve dar aos ucranianos. É fácil perce-
        ber porquê: esta guerra choca-nos o sentimento moral
        por ser completamente imoral. Não há guerras morais,
        ou melhor, agressões que tenham justificação moral,
        mas a crueldade desta choca face à falsidade das suas
        assunções. No mundo globalizado que vivemos, mes-
        mo economias isoladas como a russa devido às san-
        ções impostas, não deixaremos de ser afetados pelas
        decisões acertadas ou menos acertadas, pelas boas e
        más intenções de líderes que começam a viver uma
        realidade do seu imaginário e pretendem impô-la à
        força aos seus semelhantes. A malha económica que
        entrelaça os países é praticamente impossível de remo-
        ver nas circunstâncias atuais, ainda que muito estrago
        se possa fazer isolando uma economia específica. Mas
        face a um governo que intimida todos à sua volta, pre-
        dador que é dos acordos que faz vergando a vontade
        de outros aos seus caprichos, não devemos vender a
        nossa liberdade de forma barata. Os valentões são tão
        valentões quanto se sentem em vantagem. Quando
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