Esta crónica fala de solidão, tem laivos de tristeza mas também de esperança.
Quantas avós e avôs haverá por aí na comunidade portuguesa que calam no fundo do peito a amargura de não se sentirem mais ligados aos netos e que, de certa forma, se resignam a viver de migalhas de afectos? Principalmente agora que a pandemia, veio, com brutalidade, agravar o fosso dos desapegos e que pôs a nu as misérias e abandonos que grassam por aí, pelos lares de idosos.
Esta é a história de uma mulher que, mesmo desiludida e magoada, teima em acreditar na vida, esperançosa que melhores dias acabarão por chegar.
“Quando começamos a envelhecer ficamos mais sonhadoras. Irremediavelmente fantasistas, agarramo-nos a quimeras, imaginamo-nos, na calmaria dos dias sem fim, rodeadas de ranchos de netos embebecidos, boquiabertos perante os mundos maravilhosos que as nossa imaginação fértil e experiente vai descerrando diante dos seus olhos arregalados e inocentes.
“Avó, conta mais uma história”. E nós, felizes, olhos brilhantes e transbordantes de ternura, lá escavamos mais fundo no poço maravilhoso do imaginário inesgotável, falamos-lhes dos encantos dum jardim à beira-mar plantado, onde o sol é mais luminosos e os afectos são mais calorosos.
Talvez já tenha sido assim em tempos antigos e tão distantes, na paz das nossas aldeias, quando éramos crianças. Quando os lumes crepitavam nas lareiras a afugentar as sombras e o frio e nós, a cabecear de sono, recostadas nos regaços protectores, nos deixávamos embalar pela melopeia das nossas avós. Mas, inevitavelmente, tudo se transformou.
A vida deu muitas reviravoltas desde então.
Devo reconhecer, e aceitar, que, agora, a esfera dos meus interesses pessoais já poucos pontos de ontacto tem com os desta geração, tão diferente da minha, moldada por um mundo em permanente e acelerada transformação.
Os meus netos cresceram, são agora adolescentes que deixaram de acreditar em mundos maravilhosos de fadas e animais que falam. Para ser franca, já não sei bem se acreditam nalguma coisa.
Quando me visitam, dou comigo a observar, disfarçadamente, as reacções deles. Nos raros intervalos em que se desligam dos seus gadgets electrónicos, oiço-os falar francês entre eles, quase indiferentes às minhas frustradas tentativas de estabelecer pontes de diálogo. Talvez parte da culpa seja minha, admito.
Com o avanço dos anos, quase sem nos apercebermos, vamo-nos refugiando no conforto das memórias dum tempo distante no qual a juventude já não se reconhece. E, de uma forma ou de outra, acabamos por tombar na trivial desculpa: “no meu tempo tudo era diferente…” que nos resguarda dos fortes ventos da mudança. Geralmente, com o coração a sangrar, dissimulada atrás dum sorriso afável, acabo por me contentar com migalhas de afecto.
E iludo-me, tranquilizo-me chamando sabedoria à resignação, paz de espírito aos silêncios cada vez mais prolongados que se instalam entre nós.
Apesar de tudo, há ocasiões em que o céu se rasga em azuis de esperança. Geralmnet acontece quando o meu neto me pede para fazer o arroz doce com que gosto de o mimar ou quando passamos defronte da pastelaria portuguesa e a minha neta me implora o prazer dum pão com chouriço.
Nesses momentos pressinto que ainda nada está perdido. Há uma voz, nascida nas profundezas da memória que me segreda que, não obstante tudo, os fios da meada das nossas vidas ainda continuam entrelaçados.
Instantes que logo dissipam todas as angústias e varrem todas as sombras, suficientemente mágicos para repintar a vida com as cores mais belas do universo.”