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A VOZ DE PORTUGAL | 6 DE JULHO DE 2023 CRÓNICA 3
Perder a racionalidade
JORGE CORREIA Mas o que vemos? ca de tribalização das opiniões, em que os moderados
Cronista do jornal Violência gratuita, desde o arrancar árvores dos pas- são destruídos à partida porque na dualidade de opi-
seios até incendiar de bibliotecas, como se isto tivesse niões, ou estás comigo ou és do inimigo. Ora, a reali-
situação em França é mais algum nexo racional com a morte do jovem, que re- dade não é assim.
complexa do que à primeira cordo, ainda não se sabe com certeza em que condi- A realidade é que vivemos prisioneiros entre fações
A ta parece. Há múltiplos fa- ções ocorreu. Esta violência gratuita revela sim uma que cometem erros sucessivamente, uma realidade
vis
tores em jogo dos quais a morte do jo- doença mais grave a nível social, que pessoalmente que nos pretende repescar para uma racionalidade
vem Nahel e a violência consequente notei nas poucas vezes que visitei aquele país. com coração, que perceba que há seres humanos em
são apenas a ponta do iceberg. Infelizmente a tenta- A fratura social é evidente e o desconforto com quem jogo, mas que esse jogo se encontra delimitado por
tiva de simplificar tudo até ao extremo compromete não se pareça “francês” por qualquer sinal exterior é força das circunstâncias da realidade. Se não quere-
a boa compreensão da realidade e a respetiva procu- indisfarçável. Curiosamente mesmo os imigrantes de mos ser joguetes do tribalismo, da paixão desenfreada
ra de soluções. segunda geração nascidos em França, principalmente e por conseguinte sermos injustos, há que evitar os jul-
O extenso campo de opiniões oferecido a todos atra- em Paris, parecem herdar algumas características se- gamentos apressados, as ações intempestivas e a perda
vés das múltiplas plataformas existentes demonstra o melhantes aos franceses “originais” o que os leva a um de racionalidade que grassa pela Humanidade.
quanto ainda precisamos de aprender a utilizar estas choque de pertença – não pertença, curioso do ponto
ferramentas. de vista intelectual mas de nefastas consequências a
A profusão de opiniões, a esmagadora delas irrefle- nível social. Naturalmente nada justifica a violência a
tidas, incompletas, iníquas ou mesmo irracionais por que assistimos.
serem completamente comprometidas pela impar- Para aqueles que nunca viveram uma manifestação,
cialidade de julgamento dos seus emissores, alimenta posso confirmar por experiência própria que existe
apenas a confusão e o erro. muita paixão e pouca razão; existe um grupo de pes-
Reflexão exige-se. Temperança é absolutamente ne- soas sincero no seu protesto, ainda que possa estar
cessária. O equilíbrio das emoções é imprescindível pouco ou nada baseado na razão, mas há um outro
mas não se encontra em parte alguma. Há muito a grupo unicamente de perturbadores, de agitadores
apurar no que aconteceu no evento que culminou na que se alimentam do caos, da violência e da destruição
morte do jovem. Se pelos seus antecedentes não deve gratuitos facilmente postos em ação quando a emoção
ser desprezado como vida humana, também não deve ultrapassa largamente a razão como é este caso. Con-
ser endeusado. A pergunta que se coloca é: a vida hu- denar protestos pacíficos, e aqui sublinho pacíficos, ou
mana de um criminoso é mais valiosa do que a de um ações de escrutínio à ação policial apenas porque não
cidadão exemplar? E se essa vida for de um cidadão de concordamos com os protestos violentos também não
uma minoria? Em qualquer dos casos parece razoável é equilibrado.
verificar e confirmar o que sucedeu porque tudo in- Infelizmente queremos situar a realidade sempre
dica ter havido resistência à abordagem dos policiais num padrão que preconcebemos. Estamos numa épo-
e estes responderam com força excessiva, com legiti-
midade ou não, o que se poderá julgar em função dos
factos que devem provir tanto quanto possível de evi-
dências irrefutáveis e não única e exclusivamente dos
testemunhos dos envolvidos. Enquanto isso não acon-
tece deveria haver temperança o suficiente para não
inflamar os ânimos e aguardar com paciência e com
exigência a apresentação das evidências.