Page 3 - 2023-08-03
P. 3

A VOZ DE PORTUGAL | 3 DE AGOSTO DE 2023                                          COMUNIDADE           3
        O sectarismo (mal) disfarçado




                     JORGE CORREIA                       da palavra reparar, encontramos: retocar, consertar,  sofrimento legítimo de alguns e o complexo de outros
                     Cronista do jornal                  restaurar, indemnizar, restabelecer e compensar.” E  impede de tirar proveito. Se o amigo leitor teve a de-
                                                         continua: “...acreditamos que nenhuma dessas pala-  dicação e a coragem de ler até aqui, permita-me que
                            ecentemente veio ao meu co-  vras, ou qualquer outra da gramática colonial da lín-  lhe revele o seguinte: sou nascido em África, filho e
                            nhecimento um documen-       gua portuguesa, traduz a dimensão ou sequer sugere  neto de pessoas que emigraram para África em busca
                     Rto, aparentemente assinado  o que designamos por reparação, no que toca a tais  de vida melhor e liberdade; pessoas que trabalharam
                     por múltiplos cidadãos, denomina-   acontecimentos irreparáveis para a vida e a dignida-  para construir as suas vidas e, de inúmeras histórias
                     do “Declaração do Porto: reparar o  de desses povos”. Sem me deter no conceito de “gra-  que ouvi, jamais ouvi uma que pudesse envergonhar
        irreparável”(www.buala.org/pt/mukanda/declara-   mática  colonial”,  que  sinceramente  não  se  percebe,  a memória deles enquanto lá viveram, antes ou de-
        cao-do-porto-reparar-o-irreparavel).             verifica-se a insistência no termo “irreparável”, que  pois dessa experiência de vida que tiveram. Divulgo
         O próprio nome parte desde já de uma contradição,  numa breve consulta ao site infoepdia.pt encaminha-  isto em último intencionalmente para que o leitor se
        mas já lá vamos. Em suma é um documento que pre-  -nos para os sinónimos “irremediável” e “irrecuperá-  sentisse liberto de pensar e comparar, no íntimo do
        tende abordar a reparação dos impactos humanos ne-  vel”. Ou seja, é algo que jamais pode regressar ao seu  seu espírito, livre do condicionalismo de quem es-
        gativos da colonização ou subjugação de uns povos a  estado original, qualquer que ele tenha sido. Façamos  creve, ainda que seja importante esta clarificação. Às
        outros. Este documento apresenta vinte exigências ao  uma comparação: a morte de uma pessoa causada por  ex-colónias, não só as portuguesas mas também de
        Estado Português como forma de “reparar o irrepará-  responsabilidade de outra é irrecuperável no sentido  outros países europeus, é doloroso ver que depois da
        vel” enquanto enquadra a colonização portuguesa e o  que por maior e mais longa sejam as penalidades apli-  retirada dos europeus e entregues a si mesmas, foram
        império colonial como um dos participantes pela “es-  cadas jamais faremos regressar a vítima do mundo  e continuam assoladas por guerras, conflitos infindá-
        cravatura,..., o genocídio e o etnocídio de populações  dos mortos. Mesmo que condenemos o responsável  veis, algumas autênticas cleptocracias, genocídios e
        nativas em África,  na Abya Yala e na Ásia, a racia-  ao meu destino que a sua vítima! Aqui entra o senso  outras abominações depois de décadas de “liberdade”.
        lização e a exploração de povos e corpos-territórios  comum e o senso moral no sentido de reconhecer esta  Culpam o colonialismo... recordo-me de imediato
        humanos e não humanos...”. Este tema está capturado  realidade e uma outra: só se encontra paz reconhe-  quando a minha família teve que deixar Angola, os
        por uma fação política que a meu ver manipula sofri-  cendo os erros e pelo perdão. No documento em pau-  assalariados que trabalhavam com os meus familiares
        mentos coletivos para agitar as águas da sociedade.  ta temos coisas como no 2º ponto: “Anulação de to-  chorarem por se sentirem condenados à morte sel-
        E  como? Comecemos pelo  próprio  conceito de  es-  das as dívidas (odiosas, injustas, ilegais e/ou imorais)  vagem apenas por terem desenvolvido as suas vidas
        cravatura. Uma pequena pesquisa permite-nos logo  contraídas pelos países ocupados e colonizados por  junto dos “brancos”, na altura único garante da sua
        descobrir que a escravatura existe desde tempos ime-  Portugal e o pagamento de indemnizações às pessoas  segurança, conhecedores que eram do seu provável
        moriais, tendo existido em todos os cantos do mundo  lesadas pelo colonialismo, por exemplo, entre outros,  destino pois a esmagadora deles tinham procurado
        e de uma forma mais ou menos presente em todas as  aos ex-contratados de São Tomé e seus descenden-  emprego com aqueles com quem trabalhavam, saídos
        sociedades e culturas. Há várias formas de escravatu-  tes”. Ora, se falamos que é irreparável, como delimitar  que eram do seu ambiente tribal. Histórias de outro
        ra, desde o aproveitamento de prisioneiros inimigos  reparações? Será que depois de “reparadas”, haverão  tempo que se perdem na voragem da atual ignorância
        à própria condição da mulher que se pode equivaler  outras “reparações” porque temos margem com o  e sectarismo de pensamento. Talvez a energia fosse
        à escravatura em alguns casos. Referindo às popula-  irreparável? Ou o anulamento de dívidas contraídas  mais bem empregue nestes problemas de agora, ti-
        ções nativas, verificamos que em muitos casos houve  pelas ex-colónias: não foram elas, no exercício da sua  rando as devidas ilações do passado mas marchando
        embates mortíferos, com a maior parte das vezes van-  liberdade que contraíram essas dívidas depois da des-  em frente contribuindo para construir um futuro que
        tagem para as potências estrangeiras, mais bem pre-  truição que a guerra causou em muitas delas enquan-  as sociedades africanas, asiáticas e outras ex-coloni-
        paradas, com mais e melhores recursos. Houve, claro,  to independentes? Porque razão o cabo-verdiano e  zadas bem merecem e tardam em alcançar.
        genocídios e etnocídios, termos intelectualmente es-  guineense (línguas que desconheço, talvez os autores
        téticos mas que por vezes são pobres e suscetíveis de  se refiram ao crioulo!...) teriam que ser línguas nacio-
        interpretação e associações variadas que dão espaço a  nais tendo em conta que não fazem parte do histórico
        equívocos. Lembremos que estamos a falar de outras  cultural português?
        épocas, outras sociedades, outros costumes. Lembre-
        mos também que a Humanidade enquanto um todo      O encontro entre portugueses e os nativos africanos
        evolui, por vezes parece recuar, mas as experiências  e outros determinou a grande influência que a cul-
        que vive e os erros que comete fazem parte do seu  tura portuguesa deixou nestas sociedades e comuni-
        manancial de conhecimento que permite fazer mais  dades, influência essa que jamais passará mesmo que
        e melhor da próxima vez. Sejamos claros: nenhuma  eliminemos todas as influências deixadas, pura e sim-
        forma de escravatura, genocídio ou diferenciação de  plesmente pela evolução que as sociedades sofrem,
        um ser humano com base na sua raça ou origem ét-  constante e inelutável. Voltar atrás no tempo, para
        nica, entre outras características, é agora aceitável. E  “restaurar” o que era, é um absurdo que só a ignorân-
        “agora” porquê? Porque os erros passados deram-nos  cia do que África e algumas ex-colónias eram permite
        a descobrir que os nativos de África que os Europeus  que pensemos sequer em tais termos. Houve crimes?
        encontraram eram na realidade tão humanos quanto  Sim, terão havido, alguns mais bem documentados,
        os próprios europeus, ainda que os seus costumes pu-  outros menos. Que seria agora Portugal pedir indem-
        dessem parecer menos sofisticados aos europeus. O  nizações, reposições, reparações “irreparáveis” à Itália
        mesmo se pode aplicar a outras comunidades nativas  pelas invasões do império romano? Ou teríamos que
        na Ásia e em qualquer outro lugar do mundo. E não  pedir à Turquia, último vestígio depois da degradação
        estamos aqui a falar em superioridades, mas sim em  do império romano?
        perceção relativa. Mas na época não havia essa cons-
        ciência coletiva. E qualquer consciência coletiva leva   Infelizmente este documento é uma oportunidade
        muito tempo a construir. E, pasme-se, tem que ser  perdida pois olhando para trás mancha-se de um re-
        construída com boa dose de paciência, perseverança,  vanchismo que apenas vai atiçar as fileiras dos “velhos
        boa vontade e mesmo respeito por aqueles que ainda  do Restelo” que ainda perduram em Portugal, no que
        não estão preparados para aceitar essa realidade. O  toca a tolerância e respeito por outras culturas. Pe-
        que nos leva ao primeiro ponto de extrema importân-  gando num dizer atribuído a Albert Einstein, a vida
        cia na abordagem destes temas: não podemos julgar o  é como uma bicicleta, temos que continuar a pedalar
        passado à luz do que sabemos hoje. Podemos analisá-  para não cairmos. Andar para a frente significa tirar o
        -lo, estudá-lo, mas nunca julgá-lo como se analisásse-  melhor partido dos erros cometidos, não só na apren-
        mos um genocídio cometido hoje, muito menos com  dizagem derivada desses erros mas também do que
        implicações do foro legal!                       podemos nos enriquecer em contacto com culturas
                                                         distintas. Esse contacto teve erros? Sim, teve certa-
         No documento em questão lemos: “Nas definições  mente. Mas também teve os seus lados positivos que o
   1   2   3   4   5   6   7   8