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A VOZ DE PORTUGAL | 7 DE SETEMBRO DE 2023 CRÓNICA 3
A essência e os fait divers
JORGE CORREIA competitivo de forma saudável sem ser intolerante com mesmo pelo “mal” que causavam a si mesmos e mais
Cronista do jornal outras nações, que os portugueses até são capazes de o cedo ou mais tarde o médico tinha que mudar de para-
ser, propaga-se por uma sociedade estagnada por estar gens.️ O segundo, esse sim, era aquilo que aqueles per-
uitas vezes dou comigo a anestesiada.️ Muito poucos se levantaram com espanto sonagens queriam, pois jamais confrontava o doente
ler e reler Fernando Pessoa face à novidade do primeiro ministro António Costa com os seus erros causadores dos seus “males”, e pelas
Mnas muitas críticas que ele ter escrito à presidente da comissão europeia, Ursula prolíferas mudanças de medicamentos mostrava ao
escreveu à política portuguesa, seus Von der Leyen, acerca do problema da habitação, pe- doente que tudo fazia por ele, mesmo que os resulta-
protagonistas, às elites e população dinchando uma solução europeia.️ E os pouquíssimos dos fossem visivelmente nulos e a situação piorasse,
em geral no seu tempo. que assinalaram este facto são rapidamente enterra- isto na visão deturpada daqueles personagens que na
Se por um lado talvez mais egocêntrico conforta-me dos na lama de faits divers que automaticamente con- realidade eram irresponsáveis para consigo mesmos e
ao saber que não fui e não serei o único a dar conta dos correm para distrair toda uma sociedade: de futebol para com os seus próximos.️ Assim se encontra a socie-
empecilhos da mentalidade portuguesa ao seu próprio a comentários tolos, há de tudo por onde escolher.️ O dade portuguesa.️ Sabe o que está “mal”; sabe a origem
desenvolvimento, por outro entristece-me profunda- controlo de rendas que começa a ganhar tração, não dos seus “males”, mas não aceita o remédio necessário.️
mente por ver que nós, portugueses, batalhamos ainda fere o espírito de qualquer cidadão, nem o facto de ter Se na minha meninice aquilo era uma curiosidade, por
as mesmas deficiências que nos conduziram e mantêm sido o mesmo método utilizado por Salazar, espante- vezes cómica, estes anos todos volvidos, imagino agora
na mediocridade depois de tanto tempo.️ Verifico com -se, comos nefastos resultados bem conhecidos! Ain- o sofrimento que aquele trágico comportamento teria
espanto que com tão vasta diáspora, Portugal não be- da por cima, ganha mais tração junto daqueles mais causado a eles mesmos e em primeiro lugar aos seus
neficie da experiência da mesma em terras alheias.️ acesos antagonistas ao próprio Salazar, mas que não se familiares.️ Esta tragédia reflete-se no país pelo cultivo
Até porque há um fenómeno curioso, já assinalado importam com isso – a sociedade é amorfa e distraí- desta atitude rebelde sentimentalista, ainda que ago-
por Fernando Pessoa: valorizamos tudo que é “estran- da! Tudo passa, uma coisa e o seu contrário ao mesmo ra a sociedade seja intelectualmente mais atualizada,
geiro”, como se de uma moda tratasse, mas éramos e tempo, da deselegância à mais repugnante teimosia, encontra-se a sociedade portuguesa distraída com os
somos incapazes de mobilizar os nossos melhores re- da ironia ao sarcasmo mal disfarçado, temperados por mais irrelevantes faits divers enquanto a essência dos
cursos para proveito e progresso próprio.️ Admiramos uma incompetência bem assessorada nos órgãos de problemas, que exigem a sua aceitação e consequente
a evolução alheia, mas tragicamente resistimos à nossa comunicação social.️ “remédios” necessários, passam ao largo como carave-
própria necessidade de evolução.️ Aliás, curioso facto, Recordo-me com especial interesse certas persona- las incapazes de atracar no porto por falta de timoneiro
a reinserção na cultura de portugueses afastados do gens populares que conheci na minha meninice.️ Face capaz e de uma tripulação desorientada e descuidada.️
meio lusófono provoca um retrocesso nos mesmos, aos problemas de saúde que enfrentavam pela indisci-
acabando por defender ideias completamente opostas plina e teimosa rebeldia em evitar as recomendações
à sua experiência em sociedades “estrangeiras”, como necessárias, persistiam nas consultas (gratuitas) junto
se um vírus afetasse subitamente a sua memória e ra- do médico local para evitar “os males”, através de um
ciocínio de tal forma que a realidade fica obliterada e comprimido mágico que lhes evitasse as consequên-
nada mais faz sentido a não ser o retorno à original cias do seu comportamento insano.️ Aqui havia duas
mediocridade.️ alternativas: ou o médico era sério e rigoroso, não se-
Nas minhas navegações pelas redes sociais, pelos ór- guindo por atalhos e persistia na única receita que lhes
gãos de comunicação social portugueses e nos contac- poderia devolver a saúde que ainda restasse, confron-
tos com familiares e amigos residentes em Portugal, o tando assim o doente; ou o médico era facilitador, evi-
desencanto é notório.️ Mais do que notório, é palpável! tava o confronto e entretinha o doente com este medi-
Com o desencanto vem a inércia e a inépcia que dá camento, aquele comprimido, outro xarope, sabendo
espaço aos oportunistas incompetentes, enraizados muito bem que nada daquilo iria fazer a diferença.️ O
em ideários fantasistas sem qualquer valor real e prá- primeiro médico era sempre de evitar e rapidamente
tico.️ As discussões acabam assim por ser infrutíferas ganhava má fama: todos fugiam dele, culpavam-no
pela infantilidade de uns, a imbecilidade de outros e
o oportunismo de muitos.️ À mistura temos os media
que parecem prolíferos no semear de falsas contro-
vérsias, nos faits divers que desgastam os indivíduos
e afastam a seriedade e a sobriedade necessárias a um
debate capaz de mobilizar e focar os recursos de um
país rumo ao progresso.️
A falta de espírito patriótico, aquele orgulho em ser