A Conversão dos Mouros de Trancoso

A Conversão dos Mouros de Trancoso
Trancoso foi uma importantíssima vila da idade média portuguesa. O seu velho castelo, ainda hoje de pé a imprimir um cunho de medievalismo impressionante e raro já no País, foi palco de muitas lutas heroicas ao longo de toda a nossa história.

A falta de documentos escritos faz com que pouco se saiba da sua história anteriormente à independência do reino de Portucale. A mais antiga documentação que se lhe refere é o testamento da condessa D. Chamoa, mulher extremamente rica para a sua época e que entre vários castelos que possuía estava o de Trancoso. D. Chamoa viveu no século X. Depois da sua morte, os mouros retomaram Trancoso, que se situava numa região de fronteiras instáveis, tão depressa sendo moura como cristã.

Depois da batalha de Ourique, os mouros vencidos, num rápido contra-ataque, assolaram e chacinaram toda uma região para norte do castelo de Leiria e nesse, entretanto retomaram Trancoso. Foi então que tiveram lugar os factos que originaram a curiosa lenda que conta a conversão dos mouros de Trancoso. Afonso Henriques, sabedor das razias muçulmanas feitas a norte do Tejo, torna rapidamente para cima e, a golpes de audácia, vai reconquistando um a um os castelos que a moirama lhe tomara, até que chega às portas de Trancoso. Os mouros, sentindo-se em perigo, dispuseram-se a uma longa defesa. E, não se sabe por que razão prenderam, numa sala do castelo absolutamente só, uma cristã da vila, chamada Iberusa. A sala onde a infeliz fora trancada tinha uma alta abóbada e, além da porta, possuía apenas uma pequena fresta por onde entrava o ar, mas dificilmente a luz do dia. Iberusa não se assustou com o escuro, nem se afligiu com a solidão. Como pôde, empoleirou-se na fresta, para espreitar para fora, e viu que a hoste de D. Afonso Henriques ia avançando, pouco a pouco, à força de espadeiradas. Alegrou-se-lhe o coração e de súbito sentiu pesar-lhe a solidão, porque a expectativa e o nervosismo lhe exigiam qualquer modo de iludir o tempo. Chamou, então, os seus quatro carcereiros mouros, que, um pouco desconfiados, acorreram sem demora. Iberusa perguntou-lhes qual a sorte que o alcaide lhe reservava, ao que um deles lhe respondeu que segundo a sentença recebida ela morreria decapitada nessa mesma manhã. A rapariga não pareceu impressionar-se muito com o que a esperava em breve e, depois de apelar interiormente para a Nossa Senhora, pediu-lhes que, já que aqueles eram os seus últimos momentos, ali ficassem a fazer-lhe um pouco de companhia. Os homens entreolharam-se e, como não tinham qualquer razão para lhe negar aquele pedido inocente, deixaram-se ficar. Iberusa começou então a falar baixinho como se estivesse só e inventasse histórias para se entreter. Os carcereiros, mudos e quedos, e espantados também, ouviam a sua lengalenga sem se atreverem a interromper. Iberusa falou do tempo em que era menina, falou do que aprendera pouco a pouco no convívio com as pessoas, contou maravilhas que sabia dos milagres de Deus e da vida pobre que Jesus levara na terra. Tanto falou e disse que a certa altura percebeu um inesperado interesse por parte dos guerreiros mouros, que a escutavam embevecidos. Lá fora, o barulho da batalha tinha cessado quase sem que nenhum deles tivesse dado por isso, tão entretidos estavam os mouros a fazer perguntas e Iberusa a dar respostas. Nenhum se apercebeu de que Afonso Henriques entrara no castelo, e só quando, espantados, ouviram ranger os gonzos da porta daquela sala, voltaram à realidade. E o Rei acreditou que era milagre do Senhor aquela cristã calma, rodeada por quatro mouros embevecidos.

Iberusa, na aflição das masmorras, prometera à Nossa Senhora construir ali mesmo uma capela, se se salvasse. Por isso, assim que se viu livre de perigo, tratou de cumprir a promessa e fez erigir um templo a que se passou a chamar de Nossa Senhora da Fresta. Os mouros convertidos dedicaram o resto da sua vida à oração e à contemplação. Assim, quando as pessoas os viam entregues àquela pacífica e santa ocupação, apontavam-nos dizendo: —São os mouros convertidos de Trancoso!

Texto de José da Conceição