Crónica ao Sabor da Vida

Há múltiplas opiniões e versões para tentar explicar o desinteresse de uma farta fatia dos lusodescendentes pela vida da comunidade portuguesa de Montreal. Desde a falta de estímulos, a uma certa inércia, frequentemente vêm à baila conflitos intergeracionais, e disputas de poder e de protagonismo.
Mas raramente se aflora aquela que é, a meu ver, uma das principais razões. Não será a harmoniosa e rápida integração na sociedade de acolhimento das gerações mais novas a causa primordial deste aparente desencontro?
Para reforçar as minhas palavras, não há nada melhor do que umas pinceladas de ficção que é, geralmente, a forma mais fecunda de tratar a realidade dos factos.
“O parque, fiel refúgio nos meus prolongados passeios retemperadores, é um lugar mágico onde os acontecimentos mais imprevisíveis podem surgir a cada passo. Principalmente em dias primaveris com o de hoje, quando a exuberância da natureza parece rebentar em jorros de vida que nos entram olhos adentro como mananciais vivificantes.
Quando me aproximei do campo de relva sintética, localizado lá para o fundo, junto às courts de ténis, um grupo de rapazes e raparigas entregava-se aos prazeres dum jogo de futebol que decorria em alegre algazarra.
Por ali fiquei, cotovelos fincados na vedação, a seguir, ociosamente, o desenrolar da partida. Ao intervalo, um rapaz e uma rapariga apartaram-se do grupo e, depois de refrescarem o rosto no jacto de água que esguichava dum fontanário ali à mão, encostaram-se à vedação a recuperar forças.
Estavam na força da idade, transbordantes de energia. Ele era vigoroso, uma fronte límpida e ampla de deus grego. Ela tinha uns olhos negros enormes e luminosos, um busto esbelto de cisne.
Aquelas camisolas da selecção portuguesa de futebol, que envergavam com garbo, não deixavam margem para dúvidas.
– São portugueses? – meti conversa. A rapariga, um pouco arisca, franziu a testa e olhou-me de soslaio. O rapaz sacudiu a juba encharcada e sorriu-me.
– Os meus pais são do continente. Eu nasci no Canadá.
– Falava um português escorreito, enfeitado com um subtil sotaque que só um ouvido mais atento poderia detectar.
– Os avós da minha blonde são madeirenses, mas ela não fala o português, embora compreenda tudo o que dizemos.
– Mas sentem orgulho da vossa origem – continuei, apontando a camisola.
O rapaz afagou o emblema das quinas.
– Tem razão, quando jogamos usamos sempre estas camisolas. É o nosso talismã.
– Apostava que ainda se sentem um pouco portugueses.
– Pode ser, no meu caso nunca fui muito agarrado a esses valores mas também nunca reneguei as minhas raízes. Para lhe ser franco, não são pensamentos que me preocupem muito. Em todo o caso, quando a selecção portuguesa ganha, nunca falto à festa que a malta faz ali na St-Laurent, no bairro português.- Se gostam tanto de futebol e da nossa selecção, podiam organizar uma equipa portuguesa – insisti, a testar a tolerância deles.
Desta vez, o rapaz olhou-me surpreendido, enquanto que a rapariga, com um sorriso irónico a enfeitar-lhe os lábios carnudos, me avaliava, à socapa, da cabeça aos pés, encostando a cabeça ao peito do namorado.
– Para quê? – exclamou ele. – Quando nos apetece jogar, temos estes amigos todos.
– Apontava o grupo dos companheiros que já se preparavam para recomeçar a partida.
– São de todas as origens, sul-americanos, africanos, chineses, até um inuit cá temos. É muito mais divertido assim, não acha?
E, sem me dar tempo para prolongar a conversa, deu uma corrida para reocupar a sua posição no terreno. A rapariga presenteou-me, finalmente, com um sorriso e foi-lhe no encalce.
Ao longe, as camisolas rubras das quinas sobressaiam no cacho multicolor que já reatara o jogo, em aceso alarido.
Que gesta lhes moldou o ser e os conduziu, através dos dédalos das gerações, até este lugar? O rapaz, pela afabilidade e pelo garbo, adivinho-o empregado de mesa por aí nalgum restaurante, ou até mesmo barman de bar reputado.
A rapariga poderá ser vendedora em boutique de pronto a vestir ou coisa parecida.
Certamente, gente simples, sem grandes histórias de vida para partilhar, figurantes despercebidos na larga cena desta metrópole de variadas alquimias procriada.”