As Ausências que nos Perseguem

Há mais de um ano a esta parte, qualquer que fosse a perspetiva e expetativa de futuro de todos e de cada um de nós, ninguém, nem na mais criativa hipótese, equacionaria a realidade que estamos a viver e a experienciar, já há algum tempo, e que teima em nos acompanhar.
Recuando para março de 2020, já com a Covid-19 a alastrar-se pela Europa, nem o mais pessimista dos cenários preveria a dura e duradoura realidade que agora atravessamos, ainda para mais numa sociedade ponderada que se quer da ciência, da tecnologia e do digital e que se diz moderna e evoluída, mas que, evidentemente, não está, de todo, preparada e à altura do desafio com o qual se constatou e ainda enfrenta.
Esta realidade, embora não seja inaudita e já se tenha verificado em anteriores momentos da nossa história, ainda que noutros contextos civilizacionais, não fazia parte do imaginário de ninguém, a não ser num guião de cinema de ficção científica em que se recriasse uma ideia de um possível fim do mundo.
A verdade é que estamos a viver uma pandemia que, de modo avassalador, tem vindo a moldar o quotidiano de cada um de nós, a nível micro, e de cada um dos países, nações e civilizações, a nível macro, acentuando, cada vez mais, as divisões, diferenças, desequilíbrios e desigualdades pré-existentes, contribuindo, também, para o surgimento de, ainda, novas cisões.
Assim, é notório que continua a existir um longo caminho a percorrer para que o retorno à antiga normalidade seja efetivo e para o alcançar da tão querida equidade e justiça civilizacional global, muito ambicionada para o mundo contemporâneo.
Esse caminho é, no entanto, marcado por muitas ausências, ausências estas que a pandemia nos foi impondo e que, por se verificarem cumulativamente, têm vindo a pesar, cada vez mais, no nosso dia a dia.
A ausência da previsibilidade, da rotina, do hábito, do ritual e do costume tem tido em nós um evidente impacto, alcançando diariamente todas as faixas etárias, forçando-nos a abdicar do controlo sobre alguns dos nossos direitos e liberdades, a lidar com o inesperado, a programar apenas a curto prazo, e a viver, mais do que nunca, um dia de cada vez. Assim, ambicionando não perder a esperança no futuro, vivemos hoje precavidos e atentos para que haja um amanhã melhor.
A ausência de informação clara, adequada, plural e fidedigna, devidamente comunicada e que privilegie a qualidade em detrimento da quantidade, tem conduzido a um consensual descrédito nas lideranças e nos poderes instituídos, que, muitas vezes, contribuem proativa e demagogicamente para o agravamento da constatação em apreço.
A ausência da cultura, nas suas mais diversas manifestações, um dos maiores reveses desta crise, tem vindo a originar fatalidades imensuráveis, na sua generalidade, impercetíveis ao primeiro relance. No futuro aperceber-nos-emos da profundidade deste golpe e das suas nefastas consequências.
A ausência de prioridades, muitas vezes invertidas e cada vez mais deturpadas, onde o bem comum, frequentemente, sai diminuído em prol do bem individual, agravando-se a instabilidade laboral e acentuam-se as desigualdades sociais, tem resultado num manifesto e notório aumento do fosso que se sabe existir entre os mais frágeis e os restantes outros.
A ausência dos afetos e dos sentires, só possíveis pela presença e a convivência física, e que, apesar de todos os tão diversos, completos e plurais contatos digitais que estão atualmente à nossa disposição, tem se revelado acutilantemente degradadora, até porque, toda e qualquer interação virtual fica, em muito, aquém da real experiência que é reencontrar, à mesa, um amigo ou, inesperadamente, conhecer alguém novo.
A ausência irrecuperável que decorre do tempo ido, que só flui num sentido, e das oportunidades que a vida em espera não nos permite agarrar ou sonhar com, tem levado, inevitavelmente, a muitos “e se”.
A ausência irreparável e incurável dos entes queridos que vão partindo, sozinhos, sem a proximidade dos seus, sem um último adeus e, muitas vezes, sem a devida, reverente e solene homenagem, tem vindo a avolumar o desamparo e o desalento daqueles que, infelizmente, experienciam tamanho tormento.
Enfim, poder-se-ia elencar muitas mais ausências, na certeza que seria impossível referi-las todas. Lá está, as ausências são pessoais e intransmissíveis pois cada qual tem e sente as suas de modo muito particular e íntimo.
Acredita-se que, moral e eticamente, como em qualquer momento de crise, vem ao de cima o melhor e o pior do ser humano, contudo, particularmente nas circunstâncias atuais, é vital manter-se acesa a chama da esperança e efetuar-se uma ponderada gestão de expectativas.
Afinal de contas, quem de nós se encontrava preparado para todas estas e outras ausências que nos assaltaram e agora teimam em nos perseguir?