A Senhora da Rocha

FESTEJA-SE a dois passos de Lisboa a “milagrosa imagem de Nossa Senhora da Rocha”, no mês de Maio. Nessa altura, a população daquela região saloia acode ao santuário que guarda a imagem achada um dia, fortuitamente, pelo rapazio, no Casal da Rocha, freguesia de S. Romão de Carnaxide, Oeiras.
Não é uma romaria pitoresca como as que no Norte se efectuam, mas é, indubitavelmente, pretexto para piqueniques e animação. O episódio que deu origem ao culto desta imagem não provém, como a grande maioria, da Idade Média ou de tempos mais antigos ainda. É muito mais recente; aliás, situa-se exactamente em 1822.
No dia 28 de maio desse ano, andavam sete rapazes a tomar banho no Jamor. No meio da gritaria e da brincadeira, avistaram um melro e quiseram apanhá-lo. A ave, porém, fugiu-lhes e, entretanto, passou por eles um coelho que assustado correu a enfiar-se na toca. Os miúdos alargaram a entrada da dita e enfiaram lá para dentro em perseguição do coelho, uma cadela. Nesta altura, tocou o sino para a missa e, à pressa, taparam com pedras a entrada, deixando fechados o coelho fujão e a cadela perseguidora.
Assim que a missa terminou, voltaram à toca com uma luz. Um dos gaiatos, o mais pequeno, conseguiu entrar, e ao ver que se tratava de uma gruta, grande, chamou os outros. Uma vez entrados todos, viram no chão uma laje e quando conseguiram erguê-la, a muito custo, descobriram duas caveiras, ossos humanos, pedaços de loiça, entre os quais os de um pote, pedras lisas e roliças – certamente machados e percutores neolíticos, ou uma e outra coisa, indícios de depósito mortuário do culto dos mortos na Idade da Pedra Polida. Os rapazes apanharam o coelho que perseguiam e um deles, chamado Nicolau, levou-o para casa. Dias depois decidiu oferecê-lo a el-rei D. João VI, juntamente com uma das pedras lisas que encontrara.
Como tinham noticiado na povoação o achado das ossadas da gruta – a “casa”, como lhe chamaram -, o juiz de fora de Oeiras mandou pôr guardas à entrada, dia e noite. Muita gente acudiu a ver e foi nessa altura que alguém encontrou, num cantinho escuso da gruta, uma imagem da Virgem, com um manto de seda muito velhinho, “cor de obreia desmaiada”. Puseram a imagem na igreja de Carnaxide, mas, como a maior parte das imagens das lendas, também a Senhora da Rocha é “Fugitiva”, isto é, quando posta num local que não é o do achamento volta a casa. Assim, no dia 1 de Junho, deram por falta da estatueta e logo se suspeitou de roubo sacrílego.
Avisada a Justiça, entretanto, tratou-se de devassar o crime. Poucos dias depois, dois lavradores de Linda-a-Velha dirigiam-se com uns bois a Carnaxide, ao ferrador. Um dos animais, a certa altura do trajecto, encostou-se a uma oliveira e parou a descansar. Um deles, que tentava espicaçá-lo para tornar ao caminho, olhou para cima inadvertidamente e viu a imagem da Virgem desaparecida. Correram a chamar o juiz de Carnaxide, que, depois de confirmar no próprio local a veracidade da notícia, foi prevenir Quintino Franco, o juiz de fora de Oeiras. Enquanto isto se passava, um dos lavradores pegou na Virgem, que estava num buraco da árvore, e beijou-a.
Como não conseguiu voltar a pô-la no mesmo local, correu a comprar uma fita e alfinetes, com o que a prendeu na árvore. Começava a juntar-se gente e uma saloia, de nome Isidora, pôs uma lanterna de azeite aos pés da santinha.
Quando o magistrado de Carnaxide regressou de Oeiras trazia a ordem do juiz de fora para levar a imagem para a gruta onde fora primeiramente achada. Formou-se então uma pequena procissão e a Senhora da Rocha foi metida no seu cantinho primitivo, onde Isidora deixou acesa a lâmpada de azeite.
Passada no século XIX, esta história tem o mesmo sabor das lendas velhinhas que falam do aparecimento de imagens santas por este país fora. Contudo, por ser recente, tem a vantagem de manter ainda os nomes verdadeiros dos seus intervenientes.