Crónicas de Lisboa
Escreve-me uma carta, poderia ser o início de um conto do passado, porque hoje já quase ninguém escreve uma carta ou um bilhete postal, pois as evoluções nos meios de comunicação fizeram cair, drasticamente, a comunicação através das cartas e dos bilhetes postais.
Os mais velhos lembram-se do impacto que tinham e da ansiedade que sofriam quando esperavam e recebiam uma carta de um familiar ou de um amigo. E os namorados que usavam esta forma para comunicarem com o seu amor, às vezes até para pedir namoro à sua enamorada (mais os rapazes dos que as raparigas). Muitos namoros, quando os enamorados estavam longe, assentavam nas cartas trocadas. Havia até casamentos em que os noivos nunca se tinham visto pessoalmente e recorriam à via do “casamento por procuração”. Em plena guerra colonial, que durou treze anos e com milhares de jovens entre os vinte e um e os vinte e quatro anos por ali passaram, infelizmente, muitos não regressaram vivos (morreram cerca de dez mil e quinhentos militares portugueses em Angola, Guiné e Moçambique) foi criado o “aerograma”, numa ação conjunta entre o Movimento Nacional Feminino, o Serviço Postal Militar e a TAP, que passou a ser o principal meio de comunicação entre os jovens, “mobilizados à força” para a guerra, e os seus familiares, namoradas, madrinhas de guerra e amigos. Era um manuscrito e que depois de escrito, era fechado com a “cola da língua”, não necessitando de envelope e selo.
Havia assim muitos tipos de cartas, não me refiro ao papel ou do envelope, mas sim em relação ao seu conteúdo. Umas trazia notícias de “boas-novas” e, no extremo, poderiam trazer notícias de sofrimento ou de dramas. Enviar ou receber cartas, maioritariamente manuscritas, era algo que fazia parte da sociologia do tempo em que só os telefones fixos (estes pouco, pois ter telefone privativo não era acessível à maioria dos portugueses), e dos telegramas rivalizavam com as cartas como meios de comunicação à distância. Lembro-me, menino, lá na minha aldeia beirã, nós, miúdos, esperarmos ansiosamente a chegada do carteiro, montado na sua bicicleta “tipo pasteleira”, meio difícil de locomoção naqueles “caminhos de cabras” e cujo nome Henrique nunca mais me esqueci. Rodeávamos aquela figura de homem seco, tal era o esforço que despendia diariamente para fazer chegar a correspondência (levava de volta as expedições que os aldeões enviavam) e interagíamos com ele, porque sentíamos que ele, além de educado e afável, era um homem que nos trazia alguma cultura, num meio cujos adultos eram, maioritariamente, iletrados (analfabetos). Eramos nós, miúdos e a frequentar a escola que servíamos de “leitor”, das cartas que chegavam, e de “escribas” das cartas a expedir. Se era mais fácil ser “leitor”, já o papel de “escriba” era mais difícil, porque passar ao papel as palavras que aquela gente ia ditando, gerava alguns conflitos geracionais. Lembro-me, de uma vez, uma aldeã vir pedir à minha mãe, ela também iletrada (na idade de menina dela, só os rapazes iam à escola), para que eu escrevesse a carta que ela queria enviar a um familiar. Acerca da morada, ditava ela “Scadinhas de S. Cristóvão número 5”. Prontamente eu, puto de nove ou dez anos, disse: Não é “Scadinhas”, mas sim “Escadinhas”. A reação dela foi de desacordo e, ato continuo e com “má cara” pediu-me o envelope e foi, com certeza, procurar outro escriba.
Rebuscando no baú das memórias, dei comigo, há dias, com uma caixa dos sapatos cheia de Postais de Natal que fui recebendo ao longo dos últimos vinte e cinco anos da minha vida profissional (de Bancos, de Fornecedores, de Clientes e também de amigos). Este hábito conservador e apegado a coisas que fazem parte das minhas memórias, foram enchendo os meus espaços, pelo que, periodicamente tenho que me desfazer desses objetos de memórias. A quase totalidade desses “Postais de Natal e de Boas Festas” tiveram como destino o contentor azul da reciclagem de papel e que, rigorosamente, tento cumprir, para bem do planeta. Confesso que muito me custou este desprendimento, mas fica como último ato as memórias que pude reviver, porque, confesso, vi-os todos um a um e fiquei com meia dúzia daqueles que representavam mais desses anos em que fui destinatário duma atenção, tão simples, como enviar um postal, uns mais “ricos” do que outros. Muitas empresas e os cidadãos também, esmeravam-se na escolha, para que a mensagem cumprisse o seu fim. Manda a etiqueta que todos tenham uma parte manuscrita e assinatura, no verso da imagem escolhida. Revi e revivi naquele lote o que cada um representou como forma e meio de comunicação. No presente, são os meios modernos de comunicação que substituíram, em grandíssima parte, as saudações da “época natalícia, sejam de empresas e instituições, seja dos cidadãos.
Na linha dos meus artigos recentes e cujos títulos eram alusivos a “Bilhetes Postais” (tentar ler aqui no site do jornal) a designação de “Postal Ilustrado” era uma referência simbólica, porque fui retratando situações que os meus olhos foram captando, tal máquina fotográfica sempre pronta a disparar. Acabei, no decorrer da escrita deste artigo, por evoluir para uma análise sociológica dos meios de comunicação em papel e não sobrou espaço para falar de algo que me faz doer a alma, as imagens que os mais atentos e ainda resistentes a esta “febre natalícia”, cujo poder do Marketing fez subverter os valores genuínos do Natal, vai captando, nas ruas das cidades, e como “Bilhetes Postais hediondos” e que nos deveriam envergonhar a todos: os sem abrigos e deserdados da sorte ou reféns de vícios que os atiram para a valeta da vida e por ali vão jazendo. Contarei noutro artigo, talvez depois das festas natalícias, para não incomodar algumas almas menos solidárias.