CRÓNICA AO SABOR DA VIDA

Por razões, infelizmente, conhecidas, muito se tem falado, nos últimos tempos, do racismo sistémico mas que, por interesses de vária ordem, se tenta frequentemente escamotear e varrer para debaixo do tapete, como se fosse assunto proibido.
Mas, por ser tão flagrante, é um tema que reemerge sistematicamente a alertar-nos para as múltiplos problemas que afligem as sociedades incapazes de se libertarem, duma vez por todas, de preconceitos e estigmas que vêm do fundo dos tempos e que têm sobrevivido a todas as tentativas de os erradicar.
Basta que um conflito inesperado desponte e uma certa agitação social se instale para que logo, como rastilho incontrolável, clivagens e ódios que estavam adormecidos despertem ferozmente dando origem a violências e guerras que nos fazem descrer na capacidade humana de criar uma sociedade mais harmoniosa e civilizada onde todos tenham o seu lugar e as diferenças sejam valorizadas.
Contudo, é preciso continuar a acreditar. Continuar a ter fé na humanidade. Continuar a acreditar que a sementeira do amor universal acabará por triunfar e frutificar no coração da humanidade.
Nesse sentido, aqui vos deixo esta bela história de amor e esperança que respiguei, mais uma vez, do meu livro “O homem que falava com as flores”:

“Como todos os parques do mundo, o parque Jarry também tinha o seu imprescindível par de namorados.
O rapaz era alto, elegante, belo como um deus de ébano. A rapariga, pequena, frágil, loira e branca como a neve. As cabeças voltavam-se surpreendidas com tão gritante contraste.
Passeavam pelo parque a sua paixão como uma bandeira desfraldada. Quando se cruzavam, até mesmo a queimadora de calorias deixava tombar a máscara e sorria.
Desconfio que se, por inadvertência, o rapaz colhesse um pé dos meus montesinhos para oferecer à sua bem-amada, eu próprio fecharia os olhos, numa cumplicidade irreprimível.
Contudo, certo dia, não resisti à vontade de fazer-lhes a pergunta inevitável que bailava na cabeça de todos os frequentadores do parque.
– Como é possível que, sendo tão diferentes, se amem assim, com essa paixão?
Apanhados de surpresa, levaram tempo a recompor-se. Ele passou os dedos pela carapinha, embaraçado. Ela pousou as mãos nos joelhos, a alisar uma prega invisível da saia.
Por fim, a rapariga ousou levantar os olhos e enfrentar-me.
– Tão diferentes? – Tinha um fio de voz que escorria límpido, demorado. – Mas nós somos tão parecidos! – A mão direita levantou voo do joelho e foi pousar, numa carícia, no rosto do namorado – Temos os mesmos interesses. Gostamos das mesmas coisas. Adivinhamos os pensamentos um do outro. Vemos as cores do mundo com os mesmos olhos. Ainda pensa que somos diferentes?
E, mão branca, mão preta entrelaçadas, foram, mais uma vez, parque além, continuar a sua sementeira de amor universal”.