Celebração da Quadra Natalícia
A pandemia que sufoca o mundo este ano irá impor que a celebração da quadra natalícia se faça de forma muito diferente do habitual e seja um travão arreliador para as tradicionais reuniões familiares alargadas.
Mas, não obstante este grave problema, o mundo continuará a girar como habitualmente e se estivermos atentos aos sinais da vida, poderemos aperceber-nos que o mistério do nascimento do messias, que traz uma mensagem anunciadora de redenção da humanidade, continua a acontecer todos os dias e nos lugares maia inesperados.
Nesta quadra, propícia à meditação e à renovação da esperança, irei publicar algumas histórias alusivas à época, como esta que retirei do meu livro “Parc du Portugal”:
Maldito nó na garganta! Sobre a banca da cozinha, entre restos de comida, a garrafa de vinho, mais espremida do que um limão, lampejava de troça. Raivoso, rebuscou os bolsos e contou as moedas reunidas: doze dólares e vinte cêntimos, o suficiente para comprar o remédio de mais uma garrafa de vinhaça rasca.
A sobrevivência até ao próximo cheque do bien-être não o preocupava por aí além. A quadra do ano exacerbava a compaixão humana e bastava andar de olhos abertos para topar por todo o lado com generosas distribuições de cabazes de natal gordos de vitualhas.
Nem parecia noite de consoada. Aqui e ali, esparsos monturos de neve. O frio, fracalhote, mal beliscava a pele, sem exigências de grandes agasalhos.
O depanneur da esquina era um buraco negro, o reclame do topo da porta, geralmente ofuscante como um clarão, pingava uma luzinha amarelenta, fraco como uma candeia minguada de azeite. Cem metros adiante, as portas cerradas da loja do Açoriano arreganharam-lhe umas ventas hostis.
Foi então que o Pedro Algarvio compreendeu que não valia a pena continuar a procurar. Nessa noite, todas as forças ocultas do mundo reuniam a sua hostilidade, açuladas às canelas dos destroços humanos das cidades.
Das ruas ao redor da Igreja Santa Cruz, desembocavam vultos de crentes atraídos pela missa do galo, ao apelo do enigma vindo do fundo dos tempos.
Subiram-lhe à garganta saudades dos tempos na loja do Açoriano, das longas cavaqueiras entre um par de cervejas. Porque falar não custava dólares, como filosofava o Luís. Bons tempos aqueles em que ainda sentia forças para deitar as mãos aos cornos da vida e vergá-la ao seu jeito.
Sem se dar conta, os passos conduziram-no para a rua Laval. Lá no alto dum triplex, uma janela coava uma luz baça. A Gisele ainda lá moraria? De que cor estariam os olhos dela nessa noite? O azul dos dias de bonança ou o verdacho das horas de borrasca?
Uma dor intensa rasgou-lhe as carnes do peito. Perdera-a por uma ninharia. Numa fanfarronada de português cabeça dura, pusera-lhe as malas à porta da rua. Só por ela, numa teima de quebecoise arrebitada, ter embirrado em sair, num sábado à noite, com umas amigas. Já lá iam dez meses esgotados, dia a dia, na ampulheta do arrependimento calado pela soberba e pela vergonha do descalabro.
Quando lhe abriu a porta e o reconheceu, os olhos dela continuaram azuis. Dum azul mais sereno do que outrora.
– Entra.
Na luz quebrada da sala, uma criança dormia serena numa alcofa de palha. Os olhos do Algarvio saltaram para os olhos azuis.
– Chama-se Manuel.
Ficaram os dois, as cabeças aflorando-se, debruçados sobre a alcofa. Só então ele compreendeu a razão da nova luz nos olhos azuis da mulher.