CRÓNICA AO SABOR DA VIDA

Tentar descrever, mesmo a traços largos, o que foram os primórdios da comunidade portuguesa em Montreal, sem falar das nossas colectividade, seria como erguer uma casa sem telhado. Elas foram o refúgio onde as famílias se reuniam para evocar o passado deixado lá longe e falar dos seus sonhos de uma vida melhor.Usando uma imagem mais intensa, foram como que o oásis que surge ao viajante sequioso depois da travessia do deserto dos primeiros tempos de angústia e solidão num mundo completamente diferente daquele que tinham abandonado.
Para reforçar esta introdução, mais uma vez recorro ao livro ”Rostos, Olhares e Memória” donde extraio mais alguns excertos de entrevistas concedidas por alguns dos nossos pioneiros. Abro o livro aleatoriamente e leio: “Quando, logo de seguida, começa a falar da Associação Portuguesa do Canadá, a voz sai-lhe num murmúrio, apercebemo-nos que está a entrar em chão sagrado que é preciso pisar com reverência, e não é para menos, ou não seja a APC a mais antiga associação portuguesa do Canadá.”
«Estive lá quase desde o princípio, sou do tempo do Roldão de Andrade, um homem que se dedicou de alma e coração. Ia para lá com o meu saxofone para animar as festas. As horas de trabalho que tanta gente deu para que aquilo nascesse! A APC, o Clube Portugal de Montreal, todas as colectividades que depois nasceram, aquilo foi uma grande epopeia. Assim é que se faz uma raça. Foram homens que acreditaram.»
Algumas páginas mais à frente, outro, um dos fundador do Clube Portugal de Montreal, recorda com carinho os primeiros tempos quando os recursos eram escassos e era preciso recorrer a todos os estratagemas. Mas o que faltava em meios materiais sobejava em entusiamo e generosidade. «O Clube nasceu num sítio fantástico, quase na esquina da rua St-Denis com a St-Catherine. Fazíamos as nossas festas, mas para o clube ser o que é hoje sofremos todos muito, as nossas mulheres e os nossos filhos incluídos. Nós é que fazíamos a comida, os pastéis de bacalhau, os rissóis eram feitos nas nossas casas e eram vendidos no bar do clube para cobrir as despesas. Mas era assim naquele tempo, no fim das festas os nossos filhos ficavam a dormir em cima das mesas enquanto fazíamos as limpezas.
Depois ainda passámos por vários locais antes de nos estabelecermos aqui, na St-Laurent, na sede actual. Mas isso são histórias que já foram contadas muitas vezes.»
Com a expansão da comunidade e a instalação de novas levas de recém-chegados oriundos de lugares geográficos diferentes, novas colectividades proliferaram para colmatar os novos espaços e necessidadas que se rasgavam.
Agora, passados tantos anos, depois de tanta água ter corrido debaixo das pontes, qual será o futuro das nossas colectividades que se começam a fragmentar e inevitavemente a fragilizar? Conseguirão sobreviver à transformação que se opera presentemente na sociedade e inevitavelmente na própria comunidade? Desta vez, para tentar encontrar a ponta do fio da meada, socorro-me de algumas partes das entrevistas do livro “Rostos, Olhares e Identidade”, feitas às 2ª e 3ª gerações: «A Comunidade tem de se transformar, abandonar um certo “folclorismo” em que caiu e isso implica o aparecimento de novos projectos, talvez desenvolver um empreendedorismo socio-comunitário, que vá além do presente voluntarismo, capaz de criar empregos comunitários e novas dinâmicas.
A Comunidade poderia ter aqui em Montreal um impacto linguístico e cultural mais importante. Deveríamos investir num espaço comum, num Centro Cultural que respondesse a certas necessidades e estabelecesse laços e um intercâmbio mais estreitos com Portugal e abraçasse uma maior abertura cultural à realidade quebequense.»
“Chegámos a um ponto em que há muitos lusodescendentes muito dispersos, alguns que já nem falam língua portuguesa, é preciso preparar o futuro e a próxima grande etapa será a construção de um grande Centro, tal como os italianos têm o Centro Leonardo da Vinci, que promova determinadas actividades culturais e desportivas e que possa acolher artistas portugueses de qualidade. Evidentemente que o funcionamento deste Centro não poderia assentar somente no esforço voluntário dos seus membros, como presentemente acontece com as nossas associações, deveriam ser criados postos de trabalho remunerados para os quais, estou certo, deveriam aparecer muitos candidatos com as competências requeridas. Também não estou a descartar a possibilidade de num projecto desta envergadura existir um investimento privado, há muitas outras possibilidades que deveriam ser exploradas e tidas em consideração.»
Pela leitura e rápida análise dos trechos que transcrevemos, a necessidade da criação de um Centro Cultural (Casa de Portugal), está muito enraizada na mente das gerações mais novas mas enquanto não estiveren criadas as condições propícias à sua concretização, e tudo leva a crer que não será tão cedo (estou a recordar recentes tentativas que se goraram), por agora o mais sensato será continuar a apoiar as associações e colectividades existentes que continuam imprescindíveis para preencher os tempos recreativos e de lazer de grande parte da nossa comunidade. Como a sabedoria popular costuma dizer, mais vale um pássaro na mão do que dois a voar.