CRÓNICA AO SABOR DA VIDA | SUAVE MILAGRE DE NATAL

Inesperadamente, em Fevereiro deste ano fui internado num hospital e submetido a delicada intervenção cirúrgica. Devido a complicações relacionadas, fui induzido em coma durante duas semanas.
Quando me acordaram, já tinha rebentado a pandemia do covid-19 que fustigou o mundo com as consequências funestas que se conhecem. Depois disso, arrastei-me pelos hospitais durante mais três penosos meses, sempre bombardeado pelas notícias alarmantes que nos chegavam cada dia que passava cada vez mais filtradas do exterior pois a certa altura até as visitas de familiares e amigos foram interditas. Com os corredores do hospital vazios e os doentes apavorados refugiados nos seus quartos, parecia que o mundo nos desabara em cima.
Foi nessa situação, propícia à refleção, que compreendi que a noção do tempo é muito relativa e subjectiva. Ainda hoje me pergunto se os quinze dias que estive em estado de coma deverão ser subtraídos do calendário da minha existência terrena. Por que espaços e mundos siderais andou o meu espírito a vogar? É um enigma que nunca conseguirei decifrar.
Como estamos na quadra natalícia em que todas as fantasias são permitidas, esta manhã deixei a minha mente partir a galope. E se em vez de quinze dias os médicos me tivessem mantido naquele estado de ausência até ao dia de Natal?
Poderia assim acordar tranquilamente, de alma lavada, embalado pelo repicar de sinos festivos,e como a imaginação nos permite conduzir pelos campos floridos do devaneio, talvez pudesse acreditar que a pandemia nunca tinha existido, que a tragédia não nos atingira e que ninguém tinha morrido.
E como diz a canção, “não há machado que corte a raiz ao pensamento, porque é livre como o vento”, poderia muito bem ter acontecido, milagrosamente, que durante o meu sono profundo, o mundo se tivesse transformado radicalmente para melhor. Quando a estrela tornasse a brilhar no firmamento, para anunciar mais uma vez o nascimento do Messias, talvez viesse também anunciar que a fome, a guerra e as injustiças tinham sido banidas para sempre da face da terra e do coração da humanidade, dando início a uma nova era de Paz e de Amor.
Impossível? Mas não será este o verdadeiro espírito do Natal? Para dar sentido à existência, teremos de continuar a acreditar como a criança do belo conto “Suava Milagre” do Eça de Queirós:
(…)
“E então o filhinho, num murmúrio mais débil que o roçar duma asa, pediu à mãe que lhe trouxesse esse Rabi, que amava as criancinhas ainda as mais pobres, sarava os males ainda os mais antigos. A mãe apertou a cabeça esguedelhada:
– Oh filho! e como queres que te deixe, e me meta aos caminhos, à procura do Rabi da Galileia? Obed é rico e tem servos, e debalde buscaram Jesus, por areias e colinas, desde Chorazin até ao país de Moab. Septimus é forte, e tem soldados, e debalde correram por Jesus, desde o Hebron até ao mar. Como queres que te deixe? Jesus anda por muito longe e a nossa dor mora conosco, dentro destas paredes, e dentro delas nos prende. E mesmo que o encontrasse, como convenceria eu o Rabi tão desejado, por quem ricos e fortes suspiram, a que descesse através das cidades até este ermo, para sarar um entrevadinho tão pobre, sobre enxerga tão rota?
A criança, com duas lágrimas na face magrinha, murmurou:
– Oh, mãe, Jesus ama todos os pequeninos. E eu ainda tão pequeno, e com um tão mal pesado, e que tanto queria sarar!
– Oh, meu filho, como te posso deixar? Longe são as estradas da Galileia, e
curta a piedade dos homens. Tão rota, tão trôpega, tão triste, até os cães me ladrariam da porta dos casais. Ninguém atenderia o meu recado, e me apontaria a morada do doce Rabi. Oh filho! talvez Jesus morresse… Nem mesmo os ricos e os fortes o encontram. O céu o trouxe, o céu o levou. E com ele para sempre morreu a esperança dos tristes.
De entre os negros trapos, erguendo as suas pobres mãozinhas que tremiam, a criança murmurou:
– Mãe, eu queria ver Jesus…
E logo, abrindo devagar a porta e sorrindo Jesus disse á criança:
– Aqui estou.”

Escrito por Manuel Carvalho