Tenho dificuldade em endeusar pessoas que acabam de falecer pois eles encarnam o espírito da época que viveram com todas as qualidades e defeitos destes. Dito isto, não nos deve impedir de reconhecer as qualidades do homem ainda que discordemos mais ou menos das suas ideias e opções políticas.
O desaparecimento do ex-presidente Jorge Sampaio nos últimos dias fez de imediato recordar o homem que lutou pela esquerda, o homem preocupado com a condição humana.
O seu lado sentimental ficou para a história, talvez por vezes excessivo, mas que sem dúvida foi uma marca da sua personalidade.
A luta pela liberdade em Portugal assim como o seu papel aquando da independência de Timor serão talvez os selos mais fiéis ao homem que amava a liberdade.
À semelhança de muitos seus contemporâneos na oposição e luta contra o regime salazarista, o seu posicionamento na esquerda política é natural e encaixa bem com a sua maneira de ser e estar, posicionamento esse que manteria ao longo da sua vida.
A bonomia do seu carácter, reconhecida por simpatizantes e não simpatizantes, é talvez uma lição para o próprio PS atual, cuja falência moral é espelhada diariamente com a mais despudorada naturalidade.
Contudo, a par com esse lado humano recheado de preocupações sociais, temos também o homem que encarna a dificuldade dessa geração de políticos de esquerda em compreender e aceitar os princípios mínimos de economia.
Célebre ficará a frase “há mais vida para além do orçamento”, muitas vezes erradamente referenciada como “há mais vida para além do défice”. Ainda hoje temos o PS, agora em coligação informal com o partido comunista (PCP) e bloquistas (BE) persistindo no errado princípio de que ignorando um problema que não pretendemos reconhecer, este se resolverá por si mesmo.
Não resolve, apenas agrava, e cedo ou tarde virá o remédio amargo.
Já tivemos esse problema com António Guterres, sobre a presidência de Jorge Sampaio; tivemos o mesmo problema com Sócrates sobre a presidência de Cavaco Silva; temos o mesmo problema agora, apenas encapuçado pela flexibilidade das regras orçamentais europeias e à intervenção do banco central europeu (BCE) devido à crise pandémica.
Quando alguém desaparece por falecimento é um capítulo que se fecha.
Mas assim como ao lermos um livro, quando terminamos um capítulo sabe bem fazer uma pequena pausa e refletir sobre o que esse capítulo nos trouxe, o que nos ensinou e como devemos absorver as suas lições para os próximos capítulos. É isto que falta em Portugal, a vários níveis, e tenho pena que o desaparecimento de Jorge Sampaio não seja mote para um refletir sobre o estado atual do país e da política que assiste, ou que pretende assistir aos interesses do país. Assim como Jorge Sampaio tinha dificuldades em compreender a necessidade de uma economia sustentável e robusta que permita ser solidária com aqueles que realmente precisam, temos ao fim de meio século após revolução, a mesma dificuldade em compreender e aceitar essa realidade, agora muito mais inacessível pela criação de ilusões em torno de uma vida fácil baseada em dívida insustentável.
Se Jorge Sampaio nos ensinou que a sensibilidade pode e deve fazer parte da nossa postura, por outro lado leva-nos também a refletir que esta não deve impedir a racionalidade e o reconhecimento das necessidades reais do país e de uma população.
Escrito por Jorge Correia