O combate à pandemia estava de tal maneira imune à luta partidária que as críticas dos partidos ao Governo esta semana — depois da reunião com os peritos em saúde — deixaram Marcelo Rebelo de Sousa praticamente isolado no apoio a António Costa.
Onde havia um consenso político alargado e louvado no estrangeiro, agora (que Portugal também aparece mal colocado lá fora) há um confronto com a oposição, que não distingue a resposta à covid-19 dos outros assuntos. O Presidente da República, no entanto, não deixará o primeiro- -ministro sozinho: mesmo que isso tenha custos eleitorais nas eleições de janeiro e ainda que não esteja sempre de acordo com tudo, o chefe de Estado estará nestas matérias ao lado do Executivo.
“Não se espere que o Presidente crie uma crise política ou um afrontamento com o Governo durante uma pandemia em que existe um esforço comum”, diz Marcelo Rebelo de Sousa ao Expresso. A haver críticas ou reparos, serão feitas em privado.
Para Marcelo, com a previsão de que o Estado de alerta se pode manter pelo menos durante um ano ou mais — e com oscilações futuras imprevisíveis —, seria falta de sentido de Estado acrescentar problemas aos que o Governo já tem com a crise sanitária, com a queda na economia e com os impactos sociais. Uma divisão no topo do poder seria impensável em Belém (mas isso também está a fazer com que figuras do PSD ataquem o ex-líder do partido). Quanto à viragem na atitude das forças políticas, o Presidente continua a contar com um esforço dos partidos para tratar a pandemia num plano diferente do resto dos temas.
Mas este é apenas um desejo. A normalização do combate político neste domínio parece imparável.
O fim do consenso — e sobretudo da “colaboração” do PSD nestas matérias — ficou evidente na quarta-feira, à saída do encontro com os epidemiologistas, quando o resumo que Marcelo Rebelo de Sousa fez a desdramatizar o que ouviu na reunião foi contrariado por descrições menos tranquilizadoras: primeiro do social-democrata Ricardo Batista Leite (o aumento dos testes não explicava tudo quanto ao crescimento dos casos) e depois dos restantes partidos (poderíamos estar no início de uma segunda vaga). Confrontado pelo Expresso com o facto de ter entrado em contramão na faixa presidencial, o deputado do PSD não quis afrontar o mais que provável candidato apoiado por Rui Rio:
“Não me compete comentar o Presidente da República.” Se com a promoção desta “reflexão” com os peritos Marcelo quis continuar a promover um entendimento entre políticos com base na evidência científica avançada pelos especialistas, o tiro saiu pela culatra.
Não foi conclusivo e cada um tirou as suas conclusões.
O preço político a pagar
A sintonia entre São Bento e Belém ficou ainda mais evidente na quinta- -feira, quando António Costa disse na conferência de imprensa a seguir ao Conselho de Ministros que se revia totalmente na síntese “absolutamente correta” feita por Marcelo a seguir à reunião com os especialistas.
Umas horas depois, o Presidente devolvia o mimo para dizer que as medidas anunciadas por Costa para todo o país, para a Grande Lisboa e para as 19 freguesias que se mantinham em estado de calamidade era “uma ideia que corresponde àquilo que os espe cialistas têm defendido, que é não haver soluções gerais, mas soluções específicas para situações especificas”.
A opção por não descolar do Governo terá um preço daqui a poucos meses, quando os candidatos à Presidência começarem a ir para a rua.
Se “dava jeito em termos eleitorais” um afastamento do Governo, como diz uma fonte próxima do Presidente, a proximidade de Marcelo a Costa é um risco assumido pelo futuro recandidato, que ganha fatores adicionais de desgaste e novas vulnerabilidades perante os adversários e mesmo na sua base de apoio: eventuais erros do Governo podem contaminá-lo, iniciativas como a cerimónia das Champions têm um efeito boomerang, e uma caução à estratégia de mitigação da crise económica pode cair-lhe em cima.
A fase é crítica e Marcelo tem a consciência de que ser o primeiro a ir a votos tem um preço que será pago pela sua candidatura e não pelo PS.
No PSD já se começou a sentir a reação.
Esta semana, depois de Marcelo ter vetado um alargamento dos apoios aos sócios-gerentes aprovada por uma ‘coligação negativa’ contra o PS, Alberto Machado, líder do PSD/Porto acusou o Presidente de conluio com Costa.
Na verdade, esta posição denota já uma reserva no universo laranja em relação a Marcelo, até porque é o veto que permite que a lei não chumbe no Constitucional e que possa voltar a ser aprovada no Parlamento no âmbito do Orçamento suplementar.
Mas as críticas extravasaram o aparelho, apesar de ainda recentemente Marcelo ter feito uma aproximação a Rui Rio, com elogios ao plano económico de médio prazo, procurando equilibrar os pratos da balança.
Depois de Paulo Rangel colar o Presidente à estratégia de desconfinamento do Governo, Nuno Morais Sarmento, vice-presidente do PSD — e um velho conhecido de Marcelo —, atacou-o por ele ter dado como exemplo casos que se passaram no Estado Novo para justificar a passagem de Mário Centeno do Governo para o Banco de Portugal. E acusou-o de ser um “facilitador político” do primeiro-ministro. Marcelo respondeu que era apenas uma “distração lateral”.
Leia-se, distante do que é essencial neste momento: a pandemia. A conta será apresentada pelos eleitores em janeiro.