Paralelo 38: Mulher de xaile negro

Aproximava-me a passos largos da mulher e fantasiava sobre aquele vulto sombrio, agachado na porta de casa. Talvez um ser desligado do mundo. Talvez uma mulher sequestrada por lembranças.
Na caminhada desta manhã, no norte da ilha de São Miguel, cruzei-me com uma mulher idosa com um xaile negro à cabeça, sentada sobre a soleira da porta. Vinha, nas minhas passadas, a usufruir do odor intenso das algas que, por esta altura do ano, flutuam soltas junto aos calhaus da ilha, serpenteando verdes e castanhas o redondo azul das belas enseadas; vinha a reparar nos homens da freguesia, que saltavam de pés descalços de rocha em rocha no mourejar, que é diário, da apanha da lapa e de um ou outro búzio. Maré vazia, portanto.

Mergulhados todos, eu, a mulher, os homens, em fragrâncias  de mar salgado, espumas soltas pela brisa que arrepiava levemente as águas mansas. Aproximava-me a passos largos da mulher e fantasiava sobre aquele vulto sombrio, agachado na porta de casa. Talvez um ser desligado do mundo. Talvez uma mulher sequestrada por lembranças.

Talvez alguém a matutar o momento. Estava só e, à sua frente, para lá da rocha, para onde se guindam os olhos à toa para longe, só água e ar. Azul de mar e céu infindos. Isto, depois de se galgar por cima de uma nesga de verde, de ervas resistentes, e de outra nesga de preto, faixa de basalto duro. Pudera não, é pedra torriscada no centro da terra. Havia uma certa reverberação de luz e calor, sol em queda livre como chuva direta à superfície. Então, porquê o xaile negro e pesado a envolvê-la? Passei. Foi um instante. Dei-lhe um bom dia rápido e vi-a tapar o nariz e a boca com as mãos. Detonaram palavras toldadas: “Quem tem tino não apanha!” Como?! Senti cérebro a recolher à sua cavidade, o crânio, para decifrar o cumprimento da velha. Linguagem popular? Referia-se à covid?Certamente!

– “Olhe, não sendo a pandemia, dava-lhe um beijo!”, atirei, sempre a andar. E não me arrependi do carinho atrevido que lhe dirigi.

Compreendera que as suas palavras significavam cuidados com a sua saúde e o desejo que eu fizesse o mesmo.  Ligeiramente afastado, olhei de relance para trás e reparei que a doçura me acompanhava com um olhar manifestamente inquieto, igual ao de uma avó preocupada com a fragilidade de um neto.

Texto por João Gago da Câmara