Um Refugiado Divino

Há dias em que a nossa inspiração fica bloqueada em qualquer meandro do cérebro e por mais esforços que façamos não conseguimos alinhavar um texto por mais singelo que seja, num desses momentos de arreliadora paralisia, sentei-me defronte da televisão, com um pires de tremoços nos joelhos, que ia debicando com os olhos agarrados aos coloridos desenhos animados que desfilavam no ecrã.
Foi então que me saltou à memória a bela lenda dos tremoços que se conta em poucas palavras e que está espalhada pelas páginas da internet, copiada e recopiada vezes sem conta, em versões que pouco diferem umas das outras mas que encerram todas a mesma mensagem.
“Conta a lenda que quando a Sagrada Família se dirigia para o Egipto, para fugir à perseguição do rei Herodes, que queria matar Jesus, passou por um tremoçal cujos tremoços, ao serem pisados, teriam feito muito barulho, denunciando a fuga. Nessa altura, Nossa Senhora tê-los-ia amaldiçoado, dizendo que nunca matariam a fome a ninguém, razão pela qual nunca nos sentimos saciados mesmo comendo uma grande quantidade.”
Porque os pensamentos são como as cerejas, vêm uns atrás dos outros, esta lenda fez-me pensar que afinal Jesus também foi um pobre refugiado que se não tivesse sido acolhido no Egipto talvez não tivesse, mais tarde, espalhado a mensagem do cristianismo que é a base moral da civilização ocidental.
Este reflexão transpôs-me para os tempos actuais em que milhões de refugiados, perseguidos pela fome, pela guerra e pela crueldade humana buscam transpor fronteiras guiados pelo anseio de paz e de uma vida melhor.
Talvez estas hordas humanas já não atravessem campos de tremoços mas, infelizmente continuam a ter de enfrentar as ondas alterosas dos mares, as areias calcinantes dos desertos e escalar os espessos muros erguidos pela cegueira e pela prepotência dos donos do mundo.
Todos nós, nesta quadra do ano inundamos as redes sociais com votos de paz, harmonia e amor, geralmente proferidos ao redor de mesas transbordantes de iguarias. São votos piedosos, apaziguantes e bem intencionados, que aliviam as consciências, proporcionam uma certa tranquilidade de espírito e alguns lampejos de felicidade.
Que 2021 seja um ano de reconciliação com a Natureza e com a Vida e que a humanidade, por vezes transviada, reencontre a comunhão com as Forças Universais que nos guiam.

Escrito por Manuel Carvalho