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CRÓNICA                                   6 |   A VOZ DE PORTUGAL | TERÇA-FEIRA, 7 DE DEZEMBRO DE 2021
        CRÓNICAS DE LISBOA
        Cartões de Natal e de Boas Festas



        SERAFIM MARQUES                      Movimento Nacional Feminino, o Ser-  Enviar ou receber cartas, maioritaria-  destino o contentor azul da reciclagem
        Economista (Reformado)               viço Postal Militar e a TAP, que passou  mente manuscritas, era algo que fazia  de papel e que, rigorosamente, tento
                                             a ser o principal meio de comunicação  parte da sociologia do tempo em que  cumprir, para bem do planeta. Confes-
              screve-me  uma  carta,  poderia  entre os jovens, “mobilizados à força”  só os telefones fixos (estes pouco, pois  so que muito me custou este despren-
              ser o início de um conto do  para a guerra, e os seus familiares, na-  ter telefone privativo não era acessí-  dimento, mas fica como último ato as
        Epassado, porque hoje já quase  moradas, madrinhas de guerra e ami-      vel à maioria dos portugueses), e dos  memórias que pude reviver, porque,
        ninguém escreve uma carta ou um  gos. Era um manuscrito e que depois  telegramas rivalizavam com as cartas  confesso, vi-os todos um a um e fiquei
        bilhete postal, pois as evoluções nos  de escrito, era fechado com a “cola da  como meios de comunicação à distân-  com  meia  dúzia  daqueles que  repre-
        meios de comunicação fizeram cair,                                                 cia. Lembro-me, menino,  sentavam mais desses anos em que fui
        drasticamente, a comunicação atra-                                                 lá na minha aldeia beirã,  destinatário  duma  atenção,  tão  sim-
        vés das cartas e dos bilhetes postais.                                             nós, miúdos, esperarmos  ples, como enviar um postal, uns mais
         Os mais velhos lembram-se do im-                                                  ansiosamente a chegada do  “ricos” do que outros. Muitas empresas
        pacto que tinham e da ansiedade que                                                carteiro,  montado  na  sua  e os cidadãos também, esmeravam-
        sofriam quando esperavam e recebiam                                                bicicleta “tipo pasteleira”,  -se na escolha, para que a mensagem
        uma carta de um  familiar ou de um                                                 meio  difícil  de  locomoção  cumprisse o seu fim. Manda a etiqueta
        amigo. E os namorados que usavam                                                   naqueles  “caminhos  de  ca-  que todos tenham uma parte manus-
        esta forma para comunicarem com o                                                  bras” e cujo nome Henri-   crita e assinatura, no verso da imagem

        seu amor, às vezes até para pedir namo-                                            que nunca mais me esqueci.  escolhida. Revi e revivi naquele lote o
        ro à sua enamorada (mais os rapazes                                                Rodeávamos aquela figura  que cada um representou como forma
        dos que as raparigas). Muitos namo-                                                de  homem  seco,  tal  era  o  e meio de comunicação. No presente,
        ros, quando os enamorados estavam                                                  esforço  que  despendia  dia-  são os meios modernos de comunica-
        longe, assentavam nas cartas trocadas.                                             riamente para fazer chegar  ção que substituíram, em grandíssima
        Havia até casamentos em que os noi-                                                a correspondência (levava  parte, as saudações da “época natalícia,
        vos nunca se tinham visto pessoalmen-                                              de volta as expedições que  sejam de empresas e instituições, seja
        te e recorriam à via do “casamento por                                             os aldeões enviavam) e in-  dos cidadãos.
        procuração”. Em plena guerra colonial,                                             teragíamos com ele, porque   Na linha dos meus artigos recentes e
        que durou treze anos e com milhares  língua”, não necessitando de envelope  sentíamos que ele, além de educado e  cujos títulos eram alusivos a “Bilhetes
        de jovens entre os vinte e um e os vinte  e selo.                        afável, era um homem que nos trazia  Postais” (tentar ler aqui no site do jor-
        e quatro anos por ali passaram, infeliz-  Havia assim muitos tipos de cartas,  alguma cultura, num meio cujos adul-  nal) a designação de “Postal Ilustrado”
        mente,  muitos  não  regressaram  vivos  não me refiro ao papel ou do envelope,  tos eram, maioritariamente, iletrados  era uma referência simbólica, porque
        (morreram cerca de dez mil e quinhen-  mas sim em relação ao seu conteúdo.  (analfabetos). Eramos nós, miúdos e a  fui  retratando  situações que  os  meus
        tos militares portugueses em Angola,  Umas trazia notícias de “boas-novas”  frequentar a escola que ser-
        Guiné e Moçambique) foi criado o “ae-  e,  no extremo,  poderiam  trazer  no-  víamos de “leitor”, das cartas
        rograma”, numa ação conjunta entre o  tícias de sofrimento ou de dramas.  que chegavam, e de “escribas”
                                                                                 das cartas a expedir. Se era
                                                                                 mais fácil ser “leitor”, já o pa-
                                                                                 pel de “escriba” era mais difí-
                                                                                 cil, porque passar ao papel as
                                                                                 palavras que aquela gente ia
                                                                                 ditando, gerava alguns con-
                                                                                 flitos geracionais. Lembro-
                                                                                 -me, de uma vez, uma aldeã
                                                                                 vir pedir à minha mãe, ela
                                                                                 também iletrada (na idade
                                                                                 de menina dela, só os rapa-
                                                                                 zes iam à escola), para que
                                                                                 eu escrevesse a carta que ela
                                                                                 queria enviar a um familiar.
                                                                                 Acerca da morada, ditava ela
                                                                                 “Scadinhas de S. Cristóvão
                                                                                 número 5”. Prontamente eu,
                                                                                 puto de nove ou dez anos, disse: Não  olhos foram captando, tal máquina
                                                                                 é “Scadinhas”, mas sim “Escadinhas”.  fotográfica sempre pronta a disparar.
                                                                                 A reação dela foi de desacordo e, ato  Acabei, no decorrer da escrita deste
                                                                                 continuo e com “má cara” pediu-me o  artigo, por evoluir para uma análise
                                                                                 envelope e foi, com certeza, procurar  sociológica dos meios de comunica-
                                                                                 outro escriba.                       ção em papel e não sobrou espaço para
                                                                                  Rebuscando no baú das memórias,  falar de algo que me faz doer a alma,
                                                                                 dei comigo, há dias, com uma caixa dos  as imagens que os mais atentos e ain-
                                                                                 sapatos cheia de Postais de Natal que  da  resistentes  a  esta  “febre natalícia”,
                                                                                 fui recebendo ao longo dos últimos  cujo poder do Marketing fez subverter
                                                                                 vinte e cinco anos da minha vida pro-  os valores genuínos do Natal, vai cap-
                                                                                 fissional (de Bancos, de Fornecedores,  tando, nas ruas das cidades, e como
                                                                                 de Clientes e também de amigos). Este  “Bilhetes Postais hediondos” e que nos
                                                                                 hábito conservador e apegado a coisas  deveriam envergonhar a todos: os sem
                                                                                 que fazem parte das minhas memórias,  abrigos e deserdados da sorte ou reféns
                                                                                 foram enchendo os meus espaços, pelo  de vícios que os atiram para a valeta
                                                                                 que, periodicamente tenho que me  da vida e por ali vão jazendo. Contarei
                                                                                 desfazer desses objetos de memórias.  noutro artigo, talvez depois das festas
                                                                                 A quase totalidade desses “Postais de  natalícias, para não incomodar algu-
                                                                                 Natal e de Boas Festas” tiveram como  mas almas menos solidárias.
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