Uma morte, um património, uma divisão, herdeiros óbvios (porventura, outros nem por isso), critérios estipulados, passos a dar, eventualmente avaliações e inventários do que há para distribuir. Partilhar uma herança pode ser um processo tranquilo, resolvido sem tumultos.
Ou não.
Pode enredar- se em dúvidas, desconfianças, conflitos familiares. Chegar a consensos na divisão do património pode ser uma missão complexa e desgastante até ficar tudo preto no branco. Ana Paula Monteiro, doutorada em Psicologia Social, professora na Escola de Ciências Humanas e Sociais da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, uma das coordenadoras do livro “Gestão de Conflitos na Família”, lembra que partilhar uma herança mexe com sentimentos. Pode correr bem ou pode correr mal, depende de vários fatores e contextos.
“As emoções podem ter um papel muito mais importante do que se possa pensar e há todo um conjunto de situações do passado ou assuntos mal resolvidos que podem levar a que, de alguma forma, um conflito cresça”, realça.
E o que parece pode não o ser. “Muitas vezes, os conflitos são perceções, não existe conflito, existem perceções de que é uma situação de conflito.” Entra-se num jogo de ganhar ou perder, os interesses e as posições dos herdeiros enredam-se e não há volta a dar.
Conversar é fundamental.
“A comunicação é uma ferramenta importante, mas não é uma comunicação qualquer. Não é uma comunicação enviesada, uma comunicação por interposta pessoa geradora de conflitos”, sublinha Ana Paula Monteiro. A comunicação não pode levantar muros de pedra, a comunicação tem de ser coesa, aberta, preocupada em ouvir o outro.
“É necessário fazer uma autoanálise da própria situação, não recalcar o que se pensa, não assumir que se sabe o que sente a outra pessoa.”
Há outro aspeto que pode fazer toda a diferença.
“O perdão na família é uma questão importante para curar feridas na disputa de bens.” É um momento complicado, difícil de gerir, significa que houve uma morte na família. É um processo complexo, cheio de nuances, e nem tudo é óbvio. Não há um prazo a cumprir para dar como terminada a partilha do património de uma pessoa que faleceu, não há uma obrigação legal que defina uma data.
Os unidos de facto não têm direitos de herança, não são equiparados a cônjuges se não houver testamento que deixe por escrito essa vontade. Matilde Cortez Pinto, advogada na sociedade PLMJ, explica o que tem de ser feito para se dar início a um processo de partilha de herança. É complicado, mas não se deve deixar o tempo passar.
“A emoção é uma questão complexa, mas normalmente quanto mais tempo demora a partilha de uma herança, mais aumenta o conflito”, diz Matilde Cortez Pinto.
Outro ponto importante é que o cabeça de casal nomeado pela família seja quem efetivamente tem mais conhecimento dos bens, do ativo e do passivo.
Nem sempre é o cônjuge ou o filho mais velho, por vezes pode até ser o filho mais novo. Outra coisa é verificar logo se há testamento para não haver surpresas. “Não se deve começar uma partilha sem ter os elementos todos.”
A certidão de óbito é o primeiro procedimento. A morte por escrito.
Depois há um prazo para informar as Finanças de todo o património da pessoa que morreu, até ao terceiro mês a seguir à data do óbito, prazo que pode ser prorrogado.
Bens, imóveis, veículos, ações, dinheiro.
Tudo tem de dar entrada nas Finanças.
“As contas bancárias são congeladas para precaver que ninguém mexe no dinheiro enquanto não há partilhas.”
É necessário verificar se há testamento que pode, por exemplo, distribuir bens a terceiros, que não a família, a pessoas coletivas ou instituições.
Tratar da habilitação de herdeiros, nomear o cabeça de casal, que será uma espécie de administrador da herança até estar tudo resolvido.
Os herdeiros legitimários estão na frente da partilha.
A divisão dos bens é tratada por uma determinada ordem na linha de sucessão, ou seja, primeiro está o cônjuge e os filhos. Se os há, mais ninguém entra na distribuição. Se não for o caso, chamam-se os pais, os irmãos e seus descendentes, e outros parentes até ao quarto grau e, por último, o Estado, no caso de não haver qualquer parente vivo.
Quanto mais próximos, mais prioridade têm. Os animais de companhia não têm direito a nada, a lei não lhes reconhece capacidade sucessória.
Aceitar ou repudiar
Herdam-se bens e herdam-se dívidas.
O crédito da casa, sem seguro de vida, tem de ser pago e a herança é usada para saldar os pagamentos, nem que seja necessário vender a habitação. “Aos bens imóveis e móveis que possam constituir a universalidade da herança acrescem, ainda, outros bens – como direitos de autor, contas bancárias, ações ou quotas em empresas – e dívidas, hipotecas, penhores, pensões, rendas ou impostos devidos àquela data”, alerta Carlota Paes de Andrade, advogada da VFA Advogados. Partilhas em vida podem ou não atenuar conflitos. A morte não tem dia marcado, não se sabe se se ganha o Euromilhões ou se se perde tudo na véspera.
“As doações em vida, embora frequentes, poderão não funcionar como um elemento de harmonização familiar em contexto de partilha de herança. Por exemplo, caso o bem doado exceda a quota legítima a que esse herdeiro tenha efetivo direito por lei, poderá ter de compensar os restantes”, refere Carlota Paes de Andrade. É preciso ter presente, acrescenta, que, salvo disposição expressa em contrário, “as doações são tidas como ‘adiantamentos’ e não como meios para beneficiar um herdeiro em detrimento dos restantes”. “Este processo de compensação do quinhão hereditário poderá desvirtuar a intenção inicial de evitar conflitos e, pelo contrário, aumentá-los.”
Os bens não podem ser distribuídos sem critério. Há regras a cumprir, quotas que protegem o cônjuge e os filhos.
Ou seja, parte da herança, a chamada quota indisponível, não é subjugada ao desejo do seu titular, mas sim distribuída segundo regras aplicadas consoante os herdeiros. Essa quota é calculada tendo em conta o valor dos bens à data da morte, dos bens doados, de despesas de doações feitas em vida a descendentes herdeiros, e as dívidas da herança.
“Importa notar que, até à partilha de bens, todo o património se encontra na indivisão – a chamada herança indivisa.
Por regra, a herança só poderá manter-se nesta qualidade pelo período de cinco anos, exceto quando os herdeiros acordem uma prorrogação desse prazo”, destaca a advogada da VFA.
Ninguém é obrigado a aceitar uma herança.
Uma herança pode ser repudiada. “Todavia, ao passo que a aceitação poderá ser tácita, o repúdio, por sua vez, tem de ser expresso.
O herdeiro deverá repudiar a herança pelo meio necessário à sua alienação – caso façam parte do património bens imóveis, terá de fazê-lo por meio de escritura pública ou documento particular autenticado, colhendo a autorização do cônjuge casado em regime de comunhão”, pormenoriza Carlota Paes de Andrade.
O quinhão repudiado será disputado pelos restantes herdeiros. Se há consenso, a partilha pode ser feita.
Pode haver sorteios e se há diferenças nos bens a distribuir, fazem-se contas e pagam-se tornas entre os herdeiros. Se não há acordo, uma solução pode passar por vender todo o património e dividir o produto dessa venda.
Se não há solução, o processo segue para inventário num cartório notarial, o que permite a um terceiro, imparcial, avaliar a disposição final do património consoante a vontade do testador e as posições assumidas pelos herdeiros.
Quando há tribunal pelo meio, pode haver recursos e a partilha de uma herança arrastar-se por tempo indeterminado. Por vezes, com conflitos insanáveis para o resto da vida.